Chame como quiser. Para alguns, uma floresta é tão somente uma floresta. Há ali um tanto de biodiversidade, em flora e fauna, e uma paisagem bucólica e até instagramável, só pra usar um termo da moda. Por outro lado, uma floresta sob a guarda de um povo dali originário, cuja presença dos ancestrais é perceptível por meio de vestígios e também de uma aura espiritual, é algo como um portal que dá acesso ao lugar transcendental.
Pelo menos essa é a impressão de grande parte das pessoas que tem visitado a Floresta Nacional de Canela (Flona), principalmente, depois de 2018, quando o povo caingangue tem trabalhado na retomada de seu território. Enquanto não é liberado o último documento que vai enfim determinar qual é o espaço de terra que eles poderão ocupar, de forma definitiva, os caingangues de Canela têm desenvolvido uma série de atividades para aproximar a comunidade da Serra gaúcha, a fim de que haja uma melhor compreensão da relevância e importância de seu povo, tradições, ritos e cultura. Toda essas ações viabilizadas com recursos do Pró-Cultura RS FAC - Fundo de Apoio à Cultura, do Governo do Estado.
As atividades se intensificaram no mês de abril, que marca o período em que são lembrados os povos indígenas, de fato, o povo que deu origem ao Brasil que conhecemos hoje e que nem sempre valoriza e respeita os que já estavam aqui quando das primeiras investidas de colonização. Durante o encontro, que teve desde exibição de arremesso de lança e disparo de arco e flecha, até uma divertida corrida carregando troncos de madeira, o cacique da aldeia Kógnh Mág, Maurício Ven-tãin Salvador explicou sobre o artesanato caingangue.
— Usamos diversos materiais. Nem todos conseguimos encontrar aqui na região. Cada cipó tem uma forma de trabalhar assim como as taquaras. Além das cestas fazemos também os filtros dos sonhos, com linhas. Antigamente, pra fazer as linhas minha mãe tirava as fibras de dentro do miolo da urtiga braba e era assim que nossas mães faziam nossas roupas — recorda o cacique.
Ao lado de Maurício Ven-tãin estava o sociólogo Rodrigo Venzon, que conheceu Zílio Yagtyg, que morreu em decorrência de problemas causados pelo câncer, em 2017. Yagtyg é pai de Maurício, atual cacique da aldeia. Venzon trabalha há mais de 40 anos com os indígenas e tem linhagem dos povos originários em seu DNA. Ele disse que seu trisavô era caingangue e habita justamente esse território requerido pela aldeia Kónhun Mág, na Flona de Canela.
— Todos os materiais usados pelos indígenas eram utilitários. Por exemplo, um cesto desses era revestido com cera de abelha para que eles carregassem água. Da mesma forma o porongo, também usado para essa finalidade. A farinha de milho que eles faziam depois de deixar secar no sol, a chamada farinha de biju, flocada, não estraga e podia ser usada em um ou até dois anos. A colheita de milho enxia uns seis ou sete cestos grandes e servia para o ano todo — explicou Venzon.
Além disso, o sociólogo fez questão de estabelecer uma relação do ato de produzir os cestos com a maneira como os indígenas encaram o tempo.
— Nós vivemos na "sociedade do relógio". Mas os indígenas mantêm o seu próprio tempo por meio do artesanato. É uma espécie de "tempo de vida", que é mais importante que o "tempo de relógio". Tempo que se dedicam à vida, na relação com o meio ambiente, na relação com os parentes e amigos, que se visitam, que convivem mais tempo juntos, como hoje em que tivemos aqui uma festa (aniversário de três anos de Abner Venga, um dos filhos do cacique). E também o tempo de recuperar esses lugares. Porque o pai do Maurício (cacique) sentiu a aqui a presença dos antepassados que estavam pedindo pra ele voltar pra sua terra — discorreu Venzon.
E antes que começassem os jogos e demais atividade da tarde de sábado, o sociólogo valorizou a espiritualidade indígena, por vezes não apenas negligenciada, mas silenciada, ainda na contemporaneidade.
— Sabem porque essa terra ficou pública e não virou uma fazenda ou até mesma uma cidade, porque a parte urbana é logo mais ali na frente? É porque os espíritos ancestrais guardaram esse lugar. Há aqui os espíritos dos indígenas que foram massacrados no século 19. Eles cuidaram desse lugar até o momento em que fosse possível fazer a retomada.
Zílio Yagtyg disse que recebeu uma visão de que a retomada da aldeia seria à sombra de uma grande araucária. Quiseram os espíritos que tem guardado a floresta que o encontro de sábado ocorresse ao pé de duas araucárias, símbolo de não apenas um fruto popular na região, o pinhão, mas de sua resistência por gerações. E agora, não apenas com a presença dos ancestrais, mas das novas sementes, a nova geração de caingangues que está sendo formada para herdar a terra prometida.
Abril indígena
O projeto Histórias e Vivências, viabilizado com recursos do FAC, será finalizado na próxima quinta-feira (27):
- O quê: exibição do documentário Konhún Mág — Caminho de Volta à Floresta de Canela, seguido de debate.
- Quando: quinta-feira (27), às 19h30min.
- Onde: UERGS Hortênsias, em São Francisco de Paula.