O escritor português Afonso Cruz, um dos convidados da 1ª edição do Festival Internacional Literário de Gramado (FiliGram), cuja programação se encerra neste domingo (11), transita quase anônimo entre as pessoas. Não apenas porque sua imagem é menos conhecida do que a do compositor Zeca Baleiro, com quem ele dividiu uma mesa para falar das relações culturais entre Brasil e Portugal, mas também porque ele gosta de se misturar a elas, está sempre atento às particularidades de cada território e, sobretudo, ao que o povo dos lugares por onde ele anda tem a revelar sobre si e sobre sua comunidade.
Na entrevista a seguir, concedida na tarde nebulosa da última quarta-feira (7), o autor explica o espanto com a poesia de Manoel de Barros, além de fazer uma defesa à literatura por meio da força que há no ato de abrir um livro. Para o escritor, não importa que a nova geração esteja mais atenta a criar e propagar conteúdos tendo a imagem como linguagem prioritária. Afonso Cruz sentencia: “Abrir um livro é abrir um futuro”. E isso é dito por quem, além de escritor, é ilustrador, músico e cineasta.
Confira a entrevista a seguir:
Acredita que há um movimento focado na democratização da cultura?
Em um mundo cada dia mais globalizado, nossas relações não são nacionais. Por isso, acho que é muito importante que os povos e suas culturas interajam por um maior entendimento. Porque, no final, acabamos de chegar à conclusão de que somos universalmente feitos da mesma massa.
E como sensibilizar os novos leitores?
Eu acho que houve um período em que se tratava muito da alta cultura e baixa cultura e, especialmente, a literatura sofria mais desse problema, colocada ali num patamar demasiado solene, em que se endeusava o autor. E eu acho que tem de ser o oposto. Portanto, o diálogo entre o leitor e o escritor é enriquecedor para aquilo que os autores fazem. Porque nem sempre temos a clara noção daquilo que estamos a fazer, porque é um pouco como aquela pessoa que vive no alto de uma montanha, mas nunca saiu da montanha para ver a silhueta dela. Por isso, o leitor é um bom espelho e quanto mais espelhos tivermos para aquilo que fazemos melhor. As coisas mais importantes são os diálogos que podemos ter entre uns e outros, entre leitores e escritores e também dos escritores entre si, e com isso, nos permite partir para outras coisas.
“A literatura é uma arte exigente para a maioria das pessoas”.
AFONSO CRUZ
escritor
Apesar de usarmos a mesma língua acha que ainda há barreiras entre as culturas brasileira e portuguesa?
Temos este dado que é muito relevante: usamos a mesma língua. E, se pensarmos bem, o Brasil é tão grande e tem tanta diversidade e, se calhar, há aqui brasileiros que estão mais próximos da sociedade americana ou dos argentinos, do que do Brasil em si. Há cem anos, se eu pegasse um edifício lisboeta e o colocasse na Finlândia ou na China, notava-se que é um edifício português. Mas, hoje em dia, qualquer edifício novo, se o pegar e colocar em qualquer parte do mundo, ninguém estranha, é normalíssimo ou é relativamente comum. De resto, a cultura muda pouco, porque usamos o mesmo jeans, ouvimos a mesma música, vamos aos mesmos restaurantes, usamos as mesmas marcas de roupa. Há aqui uma coisa muito homogênea. Mas essa homogeneidade permite também a diversidade. Eu costumo comparar com grandes pedras. Se eu tiver um recipiente e colocar uma pedra muito grande dentro, me permite colocar muitas pedras pequeninas ali, porque há muito espaço entre elas. Mas quando são pedras médias, permitem menos espaço entre elas. Por isso, acho eu, estamos todos abertos à cultura do outro. E por esse motivo aparece uma japonesa a cantar fado e há uma beleza muito grande nisso. Até, porque, a maior parte da cultura e das identidades nacionais nasceram de mesclas e misturas e não de coisas puras e fechadas em si mesmas.
E qual sua relação com o Brasil?
Quando eu tinha 20 e tantos anos comecei a viajar sozinho. E um dos meus primeiros destinos foi a América do Sul e, naturalmente, como a língua facilita muitíssimo, o Brasil foi o destino que repeti mais vezes. Conheço relativamente bem o Brasil, do Acre até o Rio Grande do Sul, e foram muitos meses a viajar aqui, tendo essa facilidade da língua ainda que, por vezes, tenhamos algumas dificuldades em nos compreender.
O que o atrai tanto no Brasil a ponto de voltar várias vezes para cá?
Eu normalmente interesso-me a partir de um livro que li ou até mesmo da filosofia. Inicialmente, estava muito fascinado com as culturas indígenas, porque imaginava que, ao conhecer alguma dessas comunidades, eu poderia compreender melhor o homem antes, sem o nosso tipo de tecnologia. Depois, me senti também muito fascinado com as religiões afro-brasileiras e os vários sincretismos que existem no Brasil. Inclusive, uma das viagens que mais gostei de fazer foi precisamente ao Golfo de Benin, que é de onde saíram os escravos que depois acabaram de ser trazidos ao Brasil.
Mesmo vivendo como escritor, ilustrador, cineasta, disseste já em entrevistas que “vive de ser um leitor”. Por que se apresenta assim?
É um combustível. Se eu não ler eu não escrevo. É simples (risos), não há grande mistério nisso. Comparo sempre a um cozinheiro, porque é muito fácil perceber. Eu posso ter uma grande técnica para cozinhar, mas se eu não tiver ingredientes numa despensa eu não consigo cozinhar nada. E o ingrediente de um escritor é a leitura. É preciso ter bons ingredientes e encher essa despensa constantemente, para depois fazer alguma coisa com isso.
O que mais chamou a atenção na literatura brasileira ainda quando jovem?
Para mim, a grande revelação dos últimos 10 anos é o Manoel de Barros. Porque foi publicada a poesia completa dele recentemente em Portugal. Mas nem foi por aí que o conheci. Ainda na adolescência eu li Livro sobre nada e fiquei maravilhado com a linguagem quase infantil, mas com uma beleza poética impressionante. E, claro, conheci Machado de Assis, evidentemente. Além de Guimarães Rosa e Clarice Lispector. E agora, mais recentemente descobri escritores que conheço pessoalmente em encontros como esse, como o Eduardo Krause e o Yuri Al’Hanati, gente que eu não conhecia antes. Houve uma poeta que li, a Ana Martins Marques, gosto muito dos poemas dela. E aproveito muito essas feiras para levar muitos livros de autores locais.
Como se tornar relevante como escritor em um mundo cada dia mais visual?
A literatura é uma arte exigente para a maior parte das pessoas. Há um livro que gosto muito e já está esquecido, um livro de ensaios de Graham Greene. Ele conta algumas histórias da sua infância, algumas com importância filosófica. E em uma delas ele diz que se apercebeu, a certa altura, de que os livros que ele tinha aberto na infância tinham lhe ditado o futuro. E quando acabei de escrever O vício dos livros percebi coisas estranhíssimas que nunca havia reparado em mim, mas que eram claramente um espelho das minhas leituras. E abrir um livro é abrir um futuro. Eu acho que as pessoas até deviam perceber essa responsabilidade de que ao abrir um livro ele vai nos criar futuros. E quanto mais nos marca a leitura mais profundo e mais consequências traz para a nossa vida.