De repente, aquele bebê que chorava apenas quando estava com fome, ou sonolento, começa a demonstrar as suas próprias vontades. A linguagem entra em cena e o famoso "não" torna-se parte do vocabulário do pequeno ser. No mesmo combo, surgem alguns comportamentos como gritos, mordidas e se jogar ao chão. Esta é uma fase normal do desenvolvimento infantil e que, mais do que nunca, exige compreensão, conhecimento e afeto por parte dos pais e cuidadores.
Embora alguns profissionais fujam de rótulos como "terrible two", ou adolescência dos bebês, os termos são frequentemente usados para nomear este período da vida da criança, que começa por volta dos 24 meses.
— O bebê humano nasce muito dependente de seus pais, quase como se a dupla mãe-bebê fosse uma coisa só. Conforme a criança cresce, aprende a andar, se alimentar, falar, ela começa a tentar firmar as próprias vontades. Nada mais natural e desejado, não é? É essa fase que chamamos de "terrible two", quando a criança começa a impor seus desejos e descobrir quem ela é. Esse processo vai acontecer novamente na adolescência, quando a criança vai "ensaiar" sua versão adulta, outro período também sensível do desenvolvimento humano — explica a psicóloga Bárbara Olsen Cecatto, que mantém o perfil Criar com Empatia, no Instagram.
Ao contrário do que pais e familiares podem pensar aos deparar com situações semelhantes, estes comportamentos não são propositais, nem visam desafiar os adultos. É uma forma que a criança encontra de manifestar a sua insatisfação, dentro das suas limitações emocionais. A neurociência explica o porquê das crises que geram as temidas birras:
— Até por volta dos seis anos a criança ainda tem um cérebro primitivo. A parte do cérebro que chamamos de córtex pré-frontal é o que nos ajuda a nos regularmos. Porém, na criança, isso só começa a se desenvolver a partir dos três, quatro anos. Isso quer dizer que as crianças pequenas não vão conseguir se autorregular emocionalmente. Elas não têm o cérebro estruturado para dar conta de algumas frustrações. Às vezes eu pergunto para os pais: 'será que vocês não estão exigindo dessa criança um comportamento de adulto? — argumenta a psicóloga perinatal e da parentalidade, especialista em terapia familiar, Michele Bueno.
Novos conceitos para o educar
É fato que nunca se discutiu tanto sobre educação como hoje em dia. As redes sociais, sites e blogs sobre desenvolvimento infantil e parentalidade popularizaram e tornaram democráticos conceitos que antes habitavam somente os livros. Hoje, a um clique de distância, é possível acessar lives, entrar em grupos sobre diferentes temas e até ter acesso a cursos gratuitos; sem mencionar as postagens feitas diariamente nos perfis de educadores e profissionais da saúde. Ou seja, há conteúdo de sobra.
Da mesma forma, basta dar uma breve pesquisada pela internet para encontrar novos acompanhantes para os verbos educar e criar: criação com apego, criação com empatia, criação consciente, educação positiva, educação respeitosa... Embora as nomenclaturas sejam variadas, no fundo, todas têm em comum o respeito à infância como premissa.
Criadora da página Criar com Empatia, no Instagram, a psicóloga Bárbara Olsen Cecatto defende que as palavras-chave para o desenvolvimento infantil, principalmente nos primeiros anos de vida, são acolhimento, empatia e conexão. Ela ainda complementa:
— Criar com empatia é tentar colocar-se no lugar da criança, olhar o mundo com o olhar dos pequenos e deixar que isso guie a forma de educar. Criar com empatia é abrir espaço para as emoções - do adulto e da criança. É viver em um ambiente de respeito, acolhimento e tolerância.
Criar com empatia é abrir espaço para as emoções
BÁRBARA OLSEN CECATTO
Psicóloga
Aplicando conceitos voltados à disciplina positiva e criação consciente com as famílias que buscam a sua ajuda, a psicóloga caxiense Michele Bueno, por sua vez, detalha que os métodos também englobam agir com firmeza e estabelecer limites às crianças. Não se trata de deixar a criança solta, sem orientações.
— Tanto na criação consciente, como na disciplina positiva, a gente olha para a criança como um ser em desenvolvimento, com potencialidades, seus limites, mas respeitando o que ela pode nos entregar. Mas será que na educação respeitosa a gente não vai dar limite? Em nenhum momento a gente diz isso. A gente está olhando pra criança dentro das capacidades dela e dentro dos recursos que ela tem. Quando olho pra criança e entendo que ela não tem um cérebro maduro o suficiente, eu consigo olhar de uma maneira respeitosa — pondera.
E o castigo, funciona?
Na tentativa de controlar situações difíceis ou mesmo reproduzindo comportamentos que vieram das suas próprias infâncias, os pais apelam para o castigo. Isto quando não partem para outros tipos de punições, muito piores, que envolvem violência física e verbal. As psicólogas ouvidas pela reportagem são contrárias a práticas que envolvem ameaçar e castigar, com o argumento de que estas ações mais geram desconexão entre pais e filhos do que, efetivamente, ensinam algo positivo para as crianças.
— É importante pararmos para pensar o que ensinamos quando punimos, castigamos e ameaçamos nossas crianças. Ao invés de ensinar a importância do estudo, ou da reparação de um erro, ajudar na limpeza da casa, acabamos ensinando que elas precisam fazer coisas para fugir dos castigos ou ganhar prêmios. A lição verdadeira fica de lado. Quando punimos com castigos físicos, também banalizamos a violência. É como se a gente falasse 'tudo bem bater quando as coisas não saem como eu gostaria' — aponta Bárbara Cecatto.
Para Michele, uma educação baseada no autoritarismo não cabe mais aos perfis das crianças de hoje, nem mesmo à quantidade de conteúdo e conhecimento sobre comportamento infantil disponíveis atualmente.
— É importante lembrarmos que as crianças do passado não são as crianças de hoje. O que tínhamos de estudo e pesquisa há 20, 30, 40 anos, são diferentes do que a ciência vem nos mostrando hoje. Se pensarmos nas formas de educação do passado, eram muito utilizadas de forma autoritária. Existia muito o poder e era usada a questão do medo. Só que a gente já sabe que não é interessante. Tanto que isso pode gerar traumas, criar crenças na criança de que ela não é inteligente, não é amada. O que os estudos nos mostram é que a melhor maneira é olhar a criança de forma respeitosa, com amor — defende a psicóloga caxiense.
O que os estudos nos mostram é que a melhor maneira é olhar a criança de forma respeitosa, com amor
MICHELE BUENO
Psicóloga
Usando sua própria experiência com a filha, Michele ensina para as famílias em seu consultório uma alternativa para o castigo ou o cantinho do pensamento. Trata-se do cantinho da calma:
— Tem que tirar o conceito de algo punitivo. Tem que ser um lugar que a criança se sinta bem de ir até lá. O que eu sugiro: a gente pega a criança e constrói um lugar que ela goste, se sinta bem. Nesse momentos de explosão e de desafio, a gente pode pedir 'vamos lá no cantinho da calma, respirar. Você quer que eu vá junto?' — ensina a profissional.
Michele ainda explica que nem sempre a criança permitirá ser acolhida em momentos de explosão, mas é importante sempre se mostrar disponível a ela.
Inteligência emocional como chave
A realidade é que não há uma receita de bolo pronta de como criar filhos. Começar um ser humano do zero pode ser realmente desafiador, ainda mais em momentos de tensão, como os de birra e explosão. Por isso, o conselho dos profissionais da psicologia é buscar conhecimento não só sobre o desenvolvimento infantil, como também sobre si, ou seja, o autoconhecimento.
— Brinco que nós precisamos estudar para ser pais melhores. Hoje, a gente tem tantos recursos. A partir do momento que entendo que meu filho está tendo X comportamento não para me desafiar, mas porque faz parte do desenvolvimento, está ok. Vou educar e acolher — afirma Michele.
— Precisamos ter sempre em mente que somos espelho para nossas crianças, portanto, desenvolver nossas próprias habilidades emocionais é o melhor investimento para ver nossos filhos também desenvolvendo as deles — acrescenta Bárbara.
Para ambas as psicólogas uma criação saudável passa por ensinar às crianças sobre as suas emoções. Um passo importante é não reproduzir frases prontas, como "menino não chora", "uma mocinha desse tamanho chorando?". Reprimir os sentimentos não é um caminho adequado.
— Quem disse que a criança não pode chorar? Nós, adultos, que não toleramos o choro. Isso é uma questão nossa que precisa ser trabalhada. Está tudo bem a criança chorar, sentir raiva, tristeza. É um direito dela. Através da educação emocional a gente vai ensinando quais são os sentimentos, o porquê a gente sente, e mostramos para elas que podem, sim, expressar. Vemos adultos sufocados que não sabem nem sequer dizer o que estão sentindo, porque foram crianças que não tiveram espaço para expressar as emoções — explica Michele.
Ações simples como validar as emoções, acolher a criança e se mostrar disponível à ela podem fazer diferença não só agora, como também no futuro, quando ela terá que lidar com seus próprios sentimentos, muitas vezes, sozinha.
— O primeiro passo é ajudar a criança a nomear o que ela sente. Exemplo: talvez ela ficou brava porque você desligou a tv. Então a gente vai dizer 'filha, eu percebi que você está brava porque a mãe desligou a tv'. Se abaixa, olho no olho dela, e, depois disso, você vai falar 'eu entendi que você está desta forma, mas não pode jogar o brinquedo, não pode bater, gritar. Vamos pensar juntas o que a gente pode fazer?' Então, faz o direcionamento mais adequado: 'assim que você se acalmar, a gente pode ir brincar. Você quer que a mãe faça algo por você?'— detalha Michele.
Bárbara ainda acrescenta que todas as emoções são bem- vindas, e pessoas com alta inteligência emocional não são aquelas que não sentem as emoções desafiadoras, mas, sim, são as que sentem e conseguem fazer um manejo adequado delas.
Novo olhar pós-maternidade
— O Joaquim mudou minha forma de ver o mundo e de me relacionar com as pessoas, especialmente com as crianças.
É assim que a jornalista de Flores da Cunha Ana Carolina Sirtori, 35, define sua vida após a maternidade. Vinda de uma criação tida como tradicional, Ana conta que viveu uma verdadeira revolução em seus próprios conceitos após a chegada do filho, em 2018.
— Antes de ele nascer, eu imaginava que criança era criança, tem que obedecer o adulto, como a gente foi criado. A sociedade vê as crianças como qualquer outra coisa, até como objeto de posse, mas não como pessoa — afirma.
Sempre disposta a aprender, foi na Pedagogia que ela encontrou os alicerces que precisava para colocar em prática uma educação respeitosa e gentil. Resolveu se afastar das atividades profissionais no primeiro ano de vida de Joaquim e, neste mesmo período, iniciou sua segunda graduação. Entre uma soneca e outra do bebê, ela se aprofundava em autores e teorias que defendem o assunto.
Para além da teoria, Ana começou a observar na prática os frutos do seu conhecimento e da forma com que lida com Joaquim. Ela se recorda de um episódio marcante, há poucos meses, em que o menino derrubou leite ao se servir sozinho. O que poderia ser uma situação digna de gritos e castigos em muitos lares, para mãe e filho foi uma pequena mostra de que o caminho escolhido tem dado certo:
— Ele falou 'xiii, preciso corrigir o erro'. Porque eu sempre falei para ele que não importa se a gente errar, importa o que fazemos com o erro. Aí ele pegou um pano, limpou o leite do jeito dele, foi até a área de serviço e colocou o pano sujo na máquina de lavar, voltou e tomou o leite, bem tranquilo. Eu comecei a chorar, emocionada, porque ele errou e corrigiu o erro sozinho.
Ana observa que quase sempre suas escolhas como mãe são alvo de julgamento. Contudo, diz que seguirá apostando na criação empática e respeitosa, apesar dos "olhares tortos":
Eu me tornei uma pessoa muito melhor graças ao Joaquim e tudo que ele me ensinou
ANA CAROLINA SIRTORI
Jornalista e mãe do Joaquim
— Me sinto lutando contra maré, porque viemos de uma educação tradicional, que é cultural aqui no Sul, e aí, quando eu venho com uma criação diferente, dizem 'nossa, mas ele não vai aprender a te respeitar', 'que criança mimada!'. Só que aí vejo que, quando ele erra, corrige o erro sozinho, sem precisar de mim. Fico muito feliz do resultado que temos hoje. Eu me tornei uma pessoa muito melhor graças ao Joaquim e tudo que ele me ensinou.
Na base do afeto, conversa e repetição
O desejo de ser mãe sempre acompanhou a professora de inglês Jucélen Cislaghi, 29. Quando soube que a pequena Dora, hoje com dois anos, estava a caminho, ela já tinha uma certeza: nutrir uma relação de afeto, carinho e, principalmente, confiança com a bebê. Para isso, era preciso deixar conceitos "tradicionais" — muitos vindos da sua própria infância — de lado e buscar métodos que fossem ao encontro de uma criação com apego.
— Eu sempre quis que, caso acontecesse alguma coisa, a minha filha viesse até mim, me visse como um porto-seguro, e não que ela tivesse medo de mim. Desde a gestação eu pensava que a Dora ia ver nos pais as pessoas com quem ela pode contar, os seus protetores — reforça Jucélen.
Desde a gestação eu pensava que a Dora ia ver nos pais as pessoas com quem ela pode contar, os seus protetores
JUCÉLEN CISLAGHI
Professora de inglês e mãe da Dora
Com a ajuda da irmã, a psicóloga Suelen Cislaghi, e apoio do marido, Yuri Berlt Basso, 34, ela encontrou nos livros os conceitos para uma criação respeitosa. Dora então nasceu e as teorias dos livros puderam ser vivenciadas no dia a dia pelo casal. Quando percebe que a filha está tendo um comportamento desafiador, por exemplo, Jucélen aposta no diálogo e redireciona a vontade da menina para uma atividade segura:
— As pessoas acham que a criança não pode ter vontades e eu bato muito nessa tecla. Vou dar um exemplo que acontece bastante aqui em casa. Se eu vejo que ela está querendo muito despejar coisas, pegando a xícara dela e despejando em cima da mesa, eu converso e explico que não é legal porque faz sujeira. Aí eu faço uma atividade onde ela possa, livremente, despejar líquidos, com uma bacia ou com o regador dela lá fora. É um redirecionamento desse instinto dela, de forma supervisionada e contida — explica Jucélen.
Embora muitas pessoas associem a criação com apego à permissividade, Jucélen garante que a criação de Dora também é pautada por regras, as quais são ensinadas com muita conversa, carinho e repetição:
— Impor limite é bem complicado, a gente aprende todos os dias, por tentativas e erros. Eu vou muito pelo meu instinto, explicando o que pode e o que não pode. Mas temos que ter ciência que não é a primeira vez. Tem que repetir mil vezes para que a criança entenda, e não podemos impor um limite de um jeito e depois voltar atrás, ficar nos contradizendo. Isso confunde muito a criança — aconselha a mãe de Dora, que compartilha suas vivências na maternidade no perfil @ju.ghi, no Instagram.