Do alto da Rua dos Pinheiros se enxerga a quadra de esportes do bairro Reolon, em Caxias do Sul. Para dezenas de crianças e adolescentes, contudo, a distância entre a casa do Mestre Russo e aquele retângulo de cimento lá embaixo é bem maior do que os 600 metros que as separam no mapa. Em relatos crus, meninos e meninas atendidos pelo projeto Herdeiros de Palmares contam como as aulas de capoeira os tiraram da ociosidade destrutiva de quem sofre com poucas opções de lazer na periferia de Caxias, problema que já vitimou alguns pais, mães e irmãos de alunos do projeto criado há sete anos por Fabiano Lang de Lima, o Mestre Russo.
É para a quadra que jovens como Daniel Soares, 17, e Maria José, 19, apontam ou acenam com os olhos para se referir onde provavelmente estariam numa noite como a da última quarta-feira. Aquela área mal iluminada, para eles, simboliza o destino de muitos que não têm para onde ir e ali podem se entregar às drogas ou à violência.
– Eu era rebelde e mal educado, fazia um monte de coisa errada. Quando conheci o projeto me apaixonei e sigo até hoje. A partir disso comecei a mudar. Vi como o professor queria que eu me tornasse uma pessoa boa e isso foi me transformando, me fazendo querer ser esse exemplo para as crianças que vierem depois de mim. Se não fosse a capoeira eu ia estar incomodando por aí – conta Daniel, que trabalha como reciclador e sonha em ser professor de Educação Física.
Daniel e Maria se conheceram nas rodas de capoeira. Hoje são namorados e criam um filho, Enzo, de 2 anos. Um casal tímido, mas que não sente vergonha em contar sua história. Maria tem uma irmã que há dois meses está presa por furto. Daniel, com 10 ou 11 anos, era uma criança rebelde e que respondia com palavrões. Há cinco anos no projeto, o rapaz é o melhor exemplo, de acordo com o próprio Mestre Russo, do que uma oportunidade pode representar na vida de um jovem:
– Ele era desbocado, não tinha vergonha de mandar qualquer um para aquele lugar. Mas era um guri talentoso, por isso fui persistindo. Antes minhas aulas de capoeira eram apenas para adultos, mas posso dizer que foi a necessidade que vi em crianças como o Daniel, de ter alguém que fizesse algo por eles, que fez nascer o projeto. A maioria dessas crianças não tem o pai e a mãe presentes.
Ao contrário de se envaidecer pela pequena revolução que provoca, Mestre Russo, que também trabalha como motorista de aplicativo, acha que ainda faz pouco, quando se põe a lembrar da própria infância muito parecida com a de jovens como os que atende no projeto. Nascido em Passo Fundo e criado em uma família desestruturada, migrou para Caxias aos nove anos.
– Passei muita necessidade. Pedi esmola, comia os restos que os restaurantes botavam no lixo. Era metido em brigas, mas nunca entrei para o crime. Minha vida começou a mudar quando conheci a capoeira, aos 14 anos. Fui movido pelo interesse na luta, mas o que me transformou foi descobrir a arte que está por trás. Acho que era uma missão, porque o amigo que descobriu as aulas e me convidou para ir, só foi naquele dia. Quem ficou fui eu. Lá aprendi a diferenciar o certo do errado e como canalizar minha energia para coisas boas – conta Russo, cujo apelido remete ao cabelo que ostentava à época, que lembraria uma ushanka, gorro típico do país europeu.
"Ser voluntário é um dom"
Além de capoeira, o projeto oferece aulas de música, muay-thai, jiu-jitsu e balé, todas ministradas por voluntários. No início os alunos ganhavam café com biscoitos como lanche, mas, graças ao crescimento do projeto, já há alguns anos foi possível oferecer janta após cada noite de atividades. Durante a pandemia, no entanto, os treinos estão suspensos. Para não deixar os usuários e suas famílias desassistidos, os voluntários passaram a oferecer marmita nas noites de segunda, quarta e sexta-feira, que as pessoas buscam na sede. A maior parte dos suprimentos é fornecida pelo Banco de Alimentos da prefeitura.
Na última quarta-feira o cardápio foi sopa com massa e frango. Uma das cozinheiras, que participa desde o começo do projeto, Neusa Bueno, 53, tem na ação voluntária parte inseparável da vida. Antes de integrar o projeto, presidiu o Conselho de Saúde da UBS do bairro por cinco anos. Considera o voluntariado um presente maior para quem pratica do que para quem recebe:
– Conheci o Russo quando ele tinha uns 16 anos e veio morar no bairro. Por ter acompanhado toda a mudança na vida dele acredito muito no projeto e nos valores ensinados, de educação e respeito. Eu via muitas crianças aqui do bairro seguindo para o lado errado, indo furtar no mercado porque passavam fome... Foram essas crianças que passaram a ser atendidas aqui. Não digo para me engrandecer, mas para ser voluntário precisa ter um dom. Acho que nasci com esse dom, assim como os outros voluntários que estão aqui. Se eu não venho, nem que seja para varrer o chão, sinto um vazio no peito. É algo que me faz bem – relata.
Uma das 15 pessoas que foram buscar sua porção de sopa naquela noite, Carla Elisabete, 30, tem quatro filhos que participam do projeto. Um deles, conta, teve câncer no cérebro e por isso tem os movimentos comprometidos. Graças à capoeira, conseguiu apresentar melhoras significativas:
– Para mim o projeto fez toda a diferença. Essa comida que estou levando irá alimentar sete pessoas hoje.
Mãe de uma menina participante do projeto, Andressa Paim, 34, busca comida para ela e para três filhos, dois adolescentes e a menina. Considera que a maior virtude do projeto é fazer os jovens assumirem compromissos, algo difícil, mas possível quando eles vislumbram a recompensa:
– Aqui as crianças trocam experiências e uma influencia a outra. O melhor é elas não estarem na rua. Vejo que a capoeira cria nelas um compromisso e uma vontade de se aprimorar. O fato deles terem a graduação, quando muda a cor da faixa, é um desafio que os motiva.
Mobilização por um refeitório
Sem uma sede própria, o grupo Herdeiros de Palmares funciona no quadrilátero da sala da casa em que Mestre Russo mora com a esposa, Tainara Nunes, 24, e com os filhos Rafael, 3, e Sophia, 7. Não que os praticantes tenham de disputar espaço com móveis e utensílios, embora em algumas fotos mais antigas apareça algum sofá ou armário escorado nas paredes. Conforme a roda foi crescendo, Russo praticamente mudou a própria casa para o porão, liberando a sala para uso exclusivo das atividades do projeto.
O que incomoda os voluntários é a falta de um espaço próprio para oferecer as refeições, atualmente (não durante a pandemia) servidas na mesma sala de treinos. Por isso, uma vaquinha digital foi criada no início de julho com o objetivo de arrecadar R$ 15 mil, para construir um refeitório para cinquenta crianças e adolescentes atendidos pelo projeto. A iniciativa partiu da voluntária Taís Menegussi, da ONG Maricotas em Ação, que apresentou o Herdeiros às arquitetas caxienses Luana Barbosa e Gabriela Rossi, responsáveis pela plataforma digital Arq Dez (@arqdez, no Instagram), que se engajaram junto ao Mestre Russo.
– Precisamos do refeitório, porque não é saudável e nem é permitido oferecer as refeições no mesmo espaço em que eles treinam. Queremos respeitar todas as recomendações de saúde, como estamos respeitando suspendendo as atividades presenciais neste momento. O objetivo é ter a obra pronta quando retomarmos os treinos – destaca o capoeirista.
A parceria já conseguiu arrecadar tijolos, cimento, cal, janelas e tintas. Faltam, contudo, materiais de custo mais alto, como ferragens, vigotas, lajotas, encanamento e material elétrico. O valor arrecadado servirá para a compra desse material e para pagar a mão de obra. As doações podem ser feitas em qualquer valor, através do link http://vaka.me/919036.
Enquanto aguardamos a cura contra um vírus que fez adiar projetos e sonhos de um 2020 pleno, a solidariedade e a boa vontade de voluntários como os Herdeiros de Palmares e de todos que se dispuserem a ajudar na melhoria do projeto podem ser a vacina que precisamos enquanto sociedade.