No meio de uma tarde estranha de outono, de sol a pino como se fosse verão, em meio a disputas retóricas de gente mais preocupada em combater o avanço da covid-19, debatendo com outra gente mais preocupada em tocar a economia como se o coronavírus nunca tivesse estado entre nós, um clic da realidade, pôs a todos que se depararam com a cena acima, em espanto. Um homem deitado em uma cama, lendo, em um quarto improvisado nos Pavilhões da Festa da Uva.
De olhos cravados no livro O menino no espelho, romance escrito por Fernando Sabino, a cena expõe a vida invisível dessa gente. Homens e mulheres, à deriva, cujo teto são as estrelas ou as marquises das ruas de uma cidade que todos os dias se revela em muitas. Não há uma Caxias, há muitas que se comportam conforme o gosto de cada freguês.
Foi preciso a pandemia bater à nossa porta para que o choque da realidade pudesse nos fazer cravar os olhos para tantos e tantas que driblam a incerteza da vida. O menino no espelho é só um romance, mas, esse homem diante do espelho, é real. Ele tem nome e sobrenome, tem histórias que deixariam a muitos de cabelo em pé. Uma vida que ganha agora um novo capítulo, apensar desse tempo de medo.
O homem diante do espelho lê essa vida sob a ótica da literatura, que na verdade é a revelação de si mesmo. Está tudo ali, no livro que o homem lê. No capítulo 7, Sabino escreve:
"Todo mundo tem na vida uma oportunidade de ser dois. Nos momentos de coragem, por exemplo, em que a pessoa faz coisas que se julgava incapaz. Os atos de heroísmo, nos instantes de perigo, quando a gente é capaz de pular um muro ou subir numa árvore que normalmente seria impossível de conseguir, quem você pensa que está fazendo tudo isso senão o outro?"
O homem no espelho, que não é o de Narciso (que tantos ainda insistem em sustentar, inertes e imunes à empatia urgente desses dias), é bálsamo, porque é a declaração de que ainda somos humanos, de que a humanidade não falhou por completo. Ao final da leitura dessa obra inquietante, que confronta homens e meninos, esse homem deitado na cama ainda não terá resolvido sua vida, é verdade. Ele ainda vai precisar de uma casa, de um trabalho, de acompanhamento. E independentemente de suas escolhas, de um abraço.
Em tempos de isolamento, de estarmos impedidos até do abraço de conforto, é gratidão de se ver os que mais precisam ser assistidos, com a mínima dignidade de uma cama, de uma roupa limpa e de comida na mesa pra alimentar o corpo surrado. Da mesma forma, é digno e louvável, que um homem que tanto precisa sublimar a dureza da vida possa ter a oportunidade de rever a própria trajetória por meio da literatura, do espelho que amadurece tantos e tantos meninos mundo afora.
Ao homem no espelho, um abraço, do tamanho do afeto de tantos que se preocupam com a vida do outro. Somos um só, não apenas na luta contra a covid-19, mas na obra de sermos dignos de nos reconhecermos através do olhar do nosso irmão.