Não é preciso ser sensitivo ou profético para descobrir que os olhos são a janela da alma. Olhos brilhantes são sonhadores e românticos, talvez até ingênuos. Mas olhos opacos, revelam a aspereza que brota da incerteza com o futuro, que pode ser mais sarcástico do que esperançoso.
No abrigo temporário, organizado pela prefeitura de Caxias do Sul, nos Pavilhões da Festa da Uva, estão 105 homens e mulheres (até a tarde de sexta-feira, dia 3 de abril). A maioria tem um olhar duro, apesar do bom humor. São moradores em situação de rua, uma pequena parte, aliás, de uma população estimada em cerca de mil pessoas. Registrados pela Fundação de Assistência Social, no Cadastro Único, são 600.
— Esse é um serviço emergencial que criamos por causa do vírus. E de certa forma, é uma continuidade do atendimento que temos no Centro Pop, na abordagem da rua e nas casa de acolhimento (Carlos Miguel e São Francisco, com 40 vagas cada). É um acampamento, mas de cuidado e acompanhamento, porque queremos preservar eles e a população de Caxias, em geral — explica Vanda Ferreira Vittorazzi, diretora de Proteção Social Especial da FAS.
Desde o dia 23 de março, uma microcidade tem se formado debaixo dos pavilhões. Ninguém está lá por força ou coação. Cada um que entra no espaço recebeu um kit de higiene (com shampoo, sabonete, pasta e escova dental), além de roupa de cama e banho, e duas a três mudas de roupa. Em geral, eles carregam no olhar a carência, de um abraço, de uma palavra, de um sorriso, de acolhimento, de respeito.
— Ô Dona Vanda, que bom que senhora está aqui — diz um senhor de cabelos brancos, que prefere não revelar nome, idade, de onde vem e nem para onde vai.
— Isso é muito gratificante — diz Vanda, ao revelar o carinho e gratidão que tem recebido de cada um dos moradores em situação de rua.
O acolhimento voluntário, explica Vanda, será aceito até sábado, dia 4, das 14h às 16h. Depois disso, só serão abrigados os moradores em situação de rua que forem abordados por alguma secretaria ou órgão da prefeitura de Caxias do Sul.
No lugar certo, na hora certa
Alguns entendem que o acaso e os descaminhos da vida são as melhores soluções. Outros, têm a convicção de que tudo é destino. Júlio César da Silva Chaves, coordenador do Centro de Referência Especializada de Assistência Social para População de Rua (Centro POP), desconversa quando perguntado como foi parar nessa vida, de gente que se importa com a vida do outro.
— Eu não sei te dizer… Porque as profissões que eu sempre tive eram diferentes entre si. Eu sou professor de matemática, formado em administração e tecnólogo em automação. Então, não era para eu estar aqui — desabafa, mas sem perder o bom-humor.
Chaves tem um jeito sisudo e sério, de emoção contida.
— Ele tem um perfil muito bom para trabalhar com a população de rua. Ele consegue dar limite e para eles é importante uma figura masculina — avalia Vanda, sua colega na FAS.
— Eu procuro tratar com respeito, mas com limite. E me dou muito bem com todos. Sinto que eles se sentem seguros de estarem aqui — complementa.
Chaves se depara, a todo instante, com histórias de gente insegura diante de duas prováveis escolhas.
— Tem uns que ainda estão em um estágio primitivo, de uso de entorpecentes, e outros que já estão evoluindo, que já pediram ajuda, já conseguiram largar e se tratar. Porque, quando alguém pede ajuda, já está em um outro estágio de evolução — avalia.
Desemprego, a porta para a rua
Dentro ou fora do abrigo temporário, a vida tem os mesmos dilemas e enfrentamentos. No outro lado do pavilhão, longe de tudo e de todos, um homem observa a cidade, ao longe, através da janela. Sentado em uma cadeira, sem camisa, e de fones nos ouvidos, ouve uma rádio AM que dispara notícias pelas ondas curtas.
Quem nunca esteve em um lugar desejando estar em outro? O porto-alegrense Adair José Ferreira, aos 40 anos, observa uma rotina estranha das ruas mais pacatas com um distanciamento que nunca pensou vivenciar. Há 11 em Caxias, chegou na cidade para trabalhar. E não teve problema para manter-se empregado. Não pelo menos, até a crise que iniciou em 2015.
— Nem todos gostam de viver aqui juntos. Todo dia tem muita gente indo embora. Quando o coronavírus passar penso em sair daqui e não voltar mais pra rua. Mas, e o futuro? Só a Deus pertence — diz, Ferreira, em tom profético.
Ferreira é pedreiro, mas não tem casa. De quando em vez, consegue um trabalho para alugar um lar para chamar de seu. Ferreira aprendeu a lidar com as adversidades desde os sete anos, quando a realidade o fez amadurecer rápido, porque perdeu os pais e teve de se virar sozinho.
O profeta que fala a língua dos anjos
O texto bíblico diz, no capítulo 13 do livro de Coríntios: "Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine".
— Não há um entendimento das pessoas, nem mesmo da religião, que consiga explicar esse "falar a língua dos anjos". Pra mim, significa "falar a língua do povo", se jogar de corpo e alma e estar envolvido com essas pessoas, que é justamente o que eu faço — explica Domingos Sávio Betança Soares, 60, nascido em Rio Grande, mais conhecido como Cigano, ou Profeta Urbano, dependendo do contexto.
No versículo, o amor é citado como condição mais relevante da existência. E, se Deus é amor, como prega o mesmo livro sagrado, profetizar é agir com amor.
— Procuro profetizar pra essa gente só coisas boas, sabe. Então, não tem o profeta religioso? Eu sou o profeta do povo, mais ligado à arte — ensina, exibindo as tatuagens pelo corpo, feitas por ele mesmo, como um ofício que pratica na rua, como forma de ganhar a vida.
Há 25 anos sem pisar em Rio Grande, terra onde nasceu, diz que há 45 trabalha com arte, desde quando ainda era um adolescente descobrindo a graça da vida. Vida que nem sempre tem a graça que se espera, por causa dos sonhos frustrados.
— A vida não é fácil. Nem todos se importam com a epidemia e muitos acabam indo embora, porque não aguentam a abstinência das drogas. Mas tem outros que estão se recuperando. Eu até disse pro pessoal da FAS: "Me tragam uma cadeira e um divã, porque eles vêm falar comigo e me perguntam: "Bah, o que eu faço da minha vida?" — diz, investido de sua aura profética, enquanto observa seu povo, espalhado pelos pavilhões.
Diante dos livros que organizou em uma biblioteca improvisada, o Profeta Urbano revela que está escrevendo a sua obra. Ruas da Vida vai contar a saga dessa gente desgarrada, uns tantos sem destino, outros com sonhos ainda martelando na cabeça. A narrativa é dividida em duas linguagens diferentes, palavra e ilustração, e descreve o cotidiano dentro do pavilhão, como eles mesmos têm apelidado o abrigo improvisado.
A luta entre o bem e o mal
Enquanto transita por entre as camas, que subentendem-se quartos, o Profeta Urbano nos apresenta um outro artista que conheceu por esses descaminhos da vida. Janilton Machado Vargas, 46, nasceu em São Jerônimo, mas mora em Caxias desde 1980.
— Sou praticamente um caxiense — diverte-se Vargas, que esculpiu uma cena profética, com tintas apocalípticas.
Em pouco mais de um dia, Vargas finalizou a escultura de um mago pregando a Palavra de Deus, dividindo o púlpito com uma bruxa segurando um cacho de uvas entre as mãos.
— O que significa essa escultura? — pergunto.
— Bah, não sei te dizer… — despista Vargas.
— Pra mim, esse é um debate entre o bem e o mal — definiu o Profeta Urbano.
— E depois que tudo isso passar, Vargas? Para onde tu vai?
— Só Deus sabe… — diz, com o olhar áspero de quem pouco espera da vida.
Dentro da ficção veloz
Na tarde quente da última terça-feira (31 de março), o uruguaianense Flávio dos Santos, 52, relaxava em sua cama, lendo o livro de contos Sem Perdão, de Frederick Forsyth. Absorto dentro da ficção veloz do escritor inglês, que revela personagens que vão às últimas consequências para conseguir o que querem, Santos divaga e engana a falta de perspectiva.
Santos é um homem sem documento (roubaram sua mochila numa noite dessas na rua, quando bebeu além da conta). Ele espera o temor da coronavírus passar e voltar para a rua ganhar a vida reciclando o que os caxienses desprezam no lixo.
— Entramos juntos e prometemos sair juntos — afirma Santos, fitando o amigo Soares, conhecido pela maioria como Profeta Urbano.
Os dois se conhecem há pelo menos um ano, quando ficaram por um tempo na Casa Carlos Miguel, que abriga cerca de 40 pessoas sem teto.
Olhos brilhantes
Entre tantos relatos de gente sem rumo, com olhares de aspereza, eis que entra em cena Maria Rita Gonçalves. Aos 37 anos, a paulistana revela empatia por cada um dos abrigados, não só porque foi moradora em situação de rua na Paulicéia desvairada, mas porque eles são seres humanos.
— O que falta para algumas pessoas em Caxias é gentileza, viu! — desfere Maria Rita.
Ela é chefe de cozinha e comanda o Le Fuê Gastronomia. Acostumada a servir convidados e noivos em casamentos, Maria Rita tem se dedicado, desde o dia 24 de março, a oferecer o jantar, com sobremesa, para os moradores em situação de rua. Por uma semana, doou seu tempo, os ingredientes e o tempero com amor, para dar de comer aos que têm fome. No dia 31 de março, ela assinou contrato com a prefeitura e seguirá fornecendo jantar, com sobremesa a todos os abrigados, agora recebendo pelo serviço.
— Nunca me entendi como moradora de rua, entendi como se não tivesse um teto. Porque eu sempre trabalhei, sempre limpando aqui e ali, só que tinha de dormir num canto e outro — conta.
Maria Rita perdeu o pai aos 13 anos. A mãe, não teve estrutura para lidar com a morte do marido e cedeu ao vício do alcoolismo. Aos 15, vivendo em uma casa desajustada, Maria Rita precisou ir para a rua, porque ficou sem ter onde dormir. Essa vida sem teto durou cerca de seis meses, quando, ainda adolescente, foi resgatada pela policial militar Susi Maria Silva da Cruz, que a levou para casa. Quis o destino que elas se reencontrassem há poucos anos, quando Susi decidiu casar-se e convidou Maria Rita para que fizesse o jantar de casamento.
— Foi a Susi quem me deu a primeira oportunidade na vida. Fazer a festa dela foi um presente que Deus me deu — diz.
Quando Maria Rita entra no pavilhão para servir o jantar, a centena de abrigados silencia. Entre memórias, histórias de superação e contos que vertem de seu coração, a chefe de cozinha põe em prática a empatia, com afeto, amor e o seu par de olhos brilhantes.
— Eu penso que o coronavírus, essa doença que está aí no ar, veio para igualar o negócio. Não importa se é rico ou pobre. Todo mundo está no mesmo cesto — defende.
A menina Maria Rita cresceu, valorizou a oportunidade que teve, e hoje quer retribuir o que Susi fez por ela. A partir de segunda-feira, a chefe de cozinha vai ensinar a eles a receita do pão nosso de cada dia.
— Vou instruir eles a fazer pão, para que possam vender de porta em porta — espera Maria Rita.