Dantesco! Pode haver adjetivo melhor para ilustrar o ano de 2019 no Brasil? Fatos tenebrosos como o rompimento da barragem de Brumadinho, os incêndios na Amazônia e o derrame de óleo na costa nordestina lembraram a ambiência infernal descrita por Dante Alighieri em sua Divina Comédia. Como esse genial poeta italiano, morto há quase 700 anos, nomeia a principal praça de Caxias do Sul, é a ele que vamos recorrer para lembrar o que marcou, por aqui, o ano que se encerra. Desde 1914, o busto sisudo de Dante vive no coração da cidade, espiando tudo, sabendo de tudo, ouvindo as vozes e lendo os pensamentos dos milhares de passantes diários da praça. Senhores, Dante Alighieri é a melhor testemunha ocular da história de Caxias do Sul! Ouçamos o poeta.
Ah, vão dizer que estátuas não falam? Deixem disso, senhores, e reparem no próprio busto do poeta, sem a informativa placa de bronze do pedestal, retirada pelo poder público para que não seja roubada. Vão dizer que isso não fala muito da realidade? Invoquem um pouco da imaginação com que o poeta formatou para sempre nossa visão de inferno, purgatório e paraíso e percebam uma fina ironia nos lábios de Dante. Por sinal, esta mesma Praça Dante foi tema de acalorados conflitos neste ano, com a prefeitura negando a realização de eventos populares, sob a alegação de uma necessária reforma no espaço. O caso foi parar na justiça, que terminou autorizando a ocupação da lateral da praça pela colorida Parada Livre, em novembro. Foi uma tensão algo infernal que resultou em paraíso para a multidão festiva que lotou a praça.
Dante também presenciou a substituição dos jornais e revistas das bancas da praça por salames e queijos, em outra polêmica decisão da prefeitura. O poeta somente franziu o cenho grave, exalando o tédio de quem já sofreu na pele e no bronze tantos desatinos da política. Seu próprio nome foi vetado nesta mesma praça por décadas, quando um decreto presidencial proibiu a língua italiana em terras brasileiras – justo a língua italiana que Dante ajudou a fixar em sua obra monumental! A Praça Dante Alighieri virou Praça Rui Barbosa, mas isso passou, como tudo passa, e o poeta pôde voltar de seu forçado exílio silencioso. A história vive se repetindo, senhores: em vida, Dante também foi expulso de sua Florença natal por questões políticas. Convenhamos, não é sem razão a expressão de cansaço do poeta.
Mas nem tudo é melancolia, como nem tudo é inferno na visão de Dante. O poeta chamou sua obra-prima de comédia exatamente por ela diferir da tragédia, ao tecer um final feliz no paraíso. Há um alento redentor na narrativa dantesca, apesar do fatal aviso no pórtico do mundo inferior: “Deixai toda esperança, vós que entrais”. Se o poeta na praça ainda presencia desencantos e sofrimentos sem fim, também testemunha as lutas e purgações dos que desejam uma vida melhor e as celebrações em torno do que eleva o espírito humano às raias celestiais.
Neste 2019, Dante exultou com os 35 anos da Feira do Livro – ah, a praça irradiando encontros, ideias, histórias... Desde 2015, os olhos do poeta carregam um quê de beatitude, diante da imagem de Beatriz, sua musa imortal e guia no paraíso, moldada em bronze pela artista Dilva Conte. Dante Alighieri terminou sua Divina Comédia louvando “o amor que move o Sol e outras estrelas”. Assim, senhores, ouvindo o poeta, esse longevo habitante do coração da cidade, vamos mirar no amor como alvo e lembrar do que aqui soou como inferno, purgatório e paraíso em 2019.
Inferno
Para comentar o que foi doloroso em 2019, não precisamos evocar as imagens dantescas dos nove círculos infernais, com seus rios de sangue, lagos de lama e fossos de fogo, embora muito sangue tenha sido derramado e lama e fogo tenham sido temas recorrentes no noticiário nacional. Aqui, nos basta a inexorável morte. Neste ano, Caxias perdeu o historiador Mario Gardelin, com sua prodigiosa memória da formação da cultura ítalo-gaúcha. A sociedade perdeu as narrativas glamourosas do colunista Paulo Gargioni e a alegria festiva de Adilce Luchtemberg, a rainha da noite. A área econômica perdeu o humanismo de Nelson Sbabo, empresário atuante na luta pela construção da Rota do Sol. E a morte ainda aprontou das suas no universo esportivo, ceifando uma afetuosa madrinha: dona Ivone Bachi, mãe do técnico Tite.
Entre os anônimos, a sinistra dama de preto, sempre de foice em punho, regozijou-se em 2019 com a divulgação de um tétrico índice: a cada três dias, duas pessoas são assassinadas na Serra Gaúcha! Foi um ano de chocantes feminicídios, e neste tópico infernal, senhores, não os pouparemos da crueza da revelação de que tais crimes foram executados por tiros à queima roupa, sucessivas facadas e até ácido no rosto. Uma das vítimas estava grávida de cinco meses! Será que divulgar o que Dante imaginou para os assassinos ajuda a conter essa selvageria? Pois bem: o destino dos homicidas seria atravessar a eternidade com o corpo mergulhado num rio de sangue fervente...
O fato é que a morte, em, 2019, marcou presença até num acidente com um caminhão – na famosa Curva da Morte! – em que foram vitimados 10 bois a caminho da Expointer, em Esteio. A morte, em seu sentido mais amplo de finitude, espalhou outros lutos na cidade com a falência do empresarial Grupo Voges e com o encerramento da editora Modelo de Nuvem, responsável por premiadas publicações literárias.
Na literária viagem de Dante pelo mundo infernal, o oitavo círculo seria reservado aos fraudulentos. Ali, os ladrões teriam seus corpos espectrais continuamente picados por serpentes monstruosas, virando cinzas e outra vez espectro, em contínuo martírio. Para lá devem ir os golpistas, que também foram notícia em 2019 por enganarem uma média de três pessoas por dia em Caxias. Os crimes vão do famigerado conto do bilhete premiado ao falso sequestro avisado pelo celular, entre inéditas mentiras virtuais.
Senhores, nosso poeta na praça – que a tudo vê e escuta – sabe de outros tormentos do povo caxiense. Dante sabe da fome diária que ameaça as mais de seis mil famílias em condição de extrema pobreza e sabe do desespero de quem investiu grandes somas em incertas criptomoedas. Sabe da violência e da desumanização já banalizadas que cercam os tantos usuários do crack. Também sabe dos sonhos de vencer na vida dos que continuamente chegam a uma cidade que já abriga mais de 510 mil almas.