É fato. Vive-se um tempo delicado, um tempo em que empunhar um violino, bradar um verso, ou traçar em tintas o retrato de uma vida em tela causa espanto e patrulha. De um lado, vem a pressão dos números e da receita financeira, que parece nunca ser o suficiente para nada, inclusive para a arte. De outro, a concepção ideológica de que a arte é subproduto de pessoas que vivem à margem, sempre subversivas e escandalosas, que aproveitam-se das leis de incentivo para devaneio particular.
Apesar disso tudo. Apesar do pré-conceito para com os artistas, a produção continua e resistem os pontos pela cidade em que ainda é possível sorver um pouco de alento através da arte. Um dos exemplos mais interessantes de Caxias e, que têm prevalecido diante dos piores cenários possíveis, é a Orquestra Sinfônica da Universidade de Caxias do Sul (Osucs), que completa 18 anos em novembro.
Talvez o cenário mais tenso e triste pelo qual passou a orquestra foi a recente demissão de 15 componentes do grupo. Moacir Lazzari, coordenador do Setor de Desenvolvimento Cultural, entidade responsável pela gestão da Osucs, emociona-se só de lembrar do dia em que anunciou um por um dos integrantes a demissão.
— Eu e o maestro Manfredo Schmiedt conversamos com cada um dos músicos. Poderia simplesmente ter dito a eles que procurasse o departamento pessoal da universidade, mas nós assumimos juntos a comunicação a eles. Somos uma família e pra mim foi o pior dia da minha vida — recorda Lazzari, com os olhos pesados de lágrima.
Quem conhece Moacir Lazzari sabe o quanto ele tem se dedicado, nos bastidores, pela continuidade de projetos ligados à música erudita em Caxias, e por conseguinte, à formação de plateia e novos músicos. Se dependesse do seu coração, com certeza, Lazzari já teria tornado a Orquestra da UCS em uma filarmônica, como a de Berlim, por exemplo, que conta com cerca de 130 instrumentistas. Mas a realidade atual não é bem essa.
Mesmo assim, a UCS tem sido a maior responsável por manter vivo o projeto que tem um orçamento anual em torno de R$ 1,5 milhão. Moacir explica que cerca de 60% desse valor provém da universidade, e que o orçamento é complementado pelo aporte da Unimed, e também do que é captado através das leis Rouanet, Estadual de Incentivo a Cultura e Municipal de Incentivo à Cultura, com apoio de outras empresas.
— Para se ter uma ideia da realidade e do que significa esse investimento, nosso orçamento anual não paga sequer as despesas de um mês da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre — argumenta Lazzari.
Atualmente o elenco da orquestra conta com 25 músicos, um maestro e quatro pessoas na produção. Além da formação sinfônica, os integrantes também apresentam-se como quinteto de metais, quinteto de sopros e quarteto de cordas.
Da Osca para a Osucs
Em 1969, enquanto boa parte do país tentava seguir a vida em meio a um regime linha dura, que suspendia eleições para governadores e prefeitos, como ocorreu através do Ato Institucional Nº 7, assinado pelo presidente Artur da Costa e Silva, aqui em Caxias, um grupo de amigos fazia um concerto no Clube Guarany.
— Nessa altura eles ousaram chamar o grupo de Orquestra Sinfônica de Caxias do Sul — recorda Lazzari.
A Osca, como ficou popularmente conhecida, seguiu impávida até 1990, quando aparece em cena um ator bastante conhecido da história do Brasil, o então presidente Fernando Collor de Mello, cujos sucessivos planos econômicos deram conta de paralisar o setor cultural.
— Para não extinguir o projeto, resolveram criar a Orquestra de Câmara da Sociedade de Cultura Musical, com 13 músicos, que perdurou até 1996 — revela Lazzari.
A Sociedade de Cultura Musical (SMC) havia sido criada em 1972 como órgão para gerir e manter a Osca.
— A partir de 1996 foram integrados a Orquestra de Câmara da SMC alguns naipes de sopro, totalizando 27 músicos e que passou a se chamar Orquestra de Concertos de Caxias do Sul, e que durou até 2000 — explica.
No ano seguinte, a UCS assume a orquestra e passa a chamá-la de Orquestra Sinfônica da Universidade de Caxias do Sul (Osucs). Esse é o breve resumo dos caminhos pelos quais músicos, maestros, regentes e produtores culturais tiveram de trilhar até agora. É ou não um ato de resistência? E, apesar do certo menosprezo atual por ações culturais de um modo geral, a UCS e os parceiros da Osucs dão continuidade a um projeto que coloca a música erudita a dialogar com a música popular, literalmente no pedestal.
Concertos ao Entardecer
Um capítulo à parte da história da música erudita em Caxias é o projeto Concertos ao Entardecer, que completará 26 anos em agosto. A iniciativa, recorda Lazzari foi de Ana Rita Bertochi.
— Lembro que ela teve a ideia em 1993, depois de assistir no foyer do Theatro São Pedro, em Porto Alegre, a uma apresentação de música de câmara. E pensou em realizar isso em Caxias, na época, no Museu Municipal de Caxias, sob a direção de Tânia Tonet — explica Lazzari.
Agora, por que um programa como esse apresentado no entardecer de um domingo?
— O doutor Leovegildo Frigieri, neurologista e diretor clínico do Hospital Pompéia, na época, dizia que no último domingo do mês, sobretudo no final da tarde, ocorria a maior incidência de brigas familiares, acidentes e mortes de trânsito e acidentes cardiovasculares. E foi por isso que se decidiu realizar os concertos no último domingo do mês, ao entardecer — revela Lazzari.
O programa segue no último domingo de cada mês, com apresentações no Recreio da Juventude, em uma parceria da Osucs com a Secretaria Municipal da Cultura de Caxias. O próximo concerto ocorre dia 28 de abril. Essa parceria gerou um novo fruto que é o Museu Arte Viva, com apresentações artísticas em espaços museológicos de Caxias, também aos domingos, mas sem uma data fixa. O próximo ocorre dia 12 de maio, às 15h, no Atelier Zambelli (alusivo à Semana Nacional dos Museus), Recital de flauta e violão com Dainer Schmidt e Marco Araújo.
Diálogo entre o erudito e o popular
— Ninguém é obrigado a gostar de música erudita. Mas eu digo às pessoas, que pelo menos prove uma vez, só uma vez — sorri Lazzari, como se a sugestão de provar da música fosse êxtase da subversão.
Essa provocação de Lazzari faz muito sentido porque grande parte das pessoas enxerga uma orquestra como um velho retrato de família que a atual geração nem mais reconhece quem são os familiares emoldurados ali. Parece algo tão antigo, tão tão longe, tão tão distante que sequer faria sentido alguém sair de casa para ver uma orquestra tocar. E o que dizer então de concertos e concertos de lotação esgotada, no UCS Teatro, ou quando 8 mil pessoas reuniram-se para assistir aos músicos interpretar um repertório popular, no Concerto da Primavera.
Ou ainda, o que dizer de pessoas que se surpreendem com a força, expressão, vigor e lirismo de assistir a uma orquestra. Porque esse é o impacto que fica da maioria das pessoas que têm contato com essa proposta artística que atravessa gerações e gerações. Certa feita, um jovem foi ao espetáculo em que a orquestra tocou músicas dos fab four The Beatles. No concerto seguinte, os músicos interpretaram Wolfgang Amadeus Mozart e eis que o mesmo rapaz vai conferir.
— Ao final do concerto de Mozart, aparece um guri com uma camiseta de banda de rock e diz: "Cara, Mozart é rock'n'roll!" — recorda Lazzari, caindo na gargalhada.
A temporada de 2019 abriu com As Quatro Estações, de Antonio Vivaldi e terá seu ápice em dezembro com a apresentação da 9ª Sinfonia, de Ludwig van Beethoven. Duas das obras mais importantes da história da música, sendo que a 9ª Sinfonia exige virtuosismo e um alto nível de excelência dos instrumentistas.
No meio do caminho deste 2019 promissor para a Osucs, em maio volta à cena Tropicália, concerto alusivo aos 50 anos da RBSTV; em outubro, a nova edição do Concerto de Primavera terá como temática o samba; e em novembro, a orquestra faz uma bela parceria com o Mississippi Delta Blues Festival.
Como preservar a herança
Reza a lenda que o escritor Erico Veríssimo, em viagem ao exterior, teria sido questionado sobre o lugar onde vivia. E teria dito: "Eu venho de uma cidade que tem uma orquestra sinfônica". A história foi passada adiante por Lazzari, que de certo modo explica a relevância da Osucs e revela a herança que os caxienses têm em seu currículo. É alta a expectativa de Lazzari para os próximos anos e aponta não apenas a manutenção dos projetos, mas sua ampliação e maior circulação.
—Em pouco tempo nos readaptamos a um menor número de instrumentistas. E nosso foco será, apesar disso, circular mais com a orquestra, não apenas com a equipe sinfônica, mas também com a formação de câmara — antecipa.
Mas o olhar de Lazzari brilha quando se trata da Escola de Formação da Osucs.
— Eu desejo ver nos próximos anos mais alunos participando da nossa escola para que mais meninos tenham suas vidas transformadas através da música.
E como dar conta de tudo isso? Em uma conversa de amigos, talvez se diga que é papel da UCS, afinal de contas, ela carrega o sobrenome da instituição. Mas, para Cristina Nora Calcagnotto, Analista de Relações com o Mercado da Osucs, a comunidade tem uma parcela importante. Porque, diz ela, a orquestra está em Caxias e pode ser apoiada com recursos que seriam destinados ao governo federal, através do Imposto de Renda, e podem ser destinados à Osucs.
— O processo é muito simples, e tanto as empresas quanto para pessoa física, e cada um de nós pode destinar parte do seu imposto às ações da orquestra. Há um estudo, aliás, que diz que Caxias deixa de contar com R$ 10 milhões, por ano, pelo simples fato de as pessoas não destinarem seu imposto para projetos culturais em Caxias. Nossa argumentação é de que cada um pode escolher para onde destinar parte do seu imposto e assim saber exatamente onde ele está sendo empregado — justifica Cristina.
Lazzari aproveita a deixa e dispara:
— De que adianta abrir o ano com As Quatro Estações se não tivermos continuidade e projetos de formação de plateia?
Como um maestro, Lazzari aponta a batuta a cada um dos caxienses de coração, tendo nascidos aqui ou não, para que sejam o coro de muitas vozes nessa epopeia musical tom tons operísticos. Um bravo a Osucs!
Concertos a se destacar
Erudito
Julho - Sinfonia nº 40, de Mozart
Setembro - Concerto nº 21, de Mozart, com Olinda Alessandrini
Dezembro - 9ª Sinfonia, de Beethoven
Popular
Maio - Tropicália - concerto alusivo aos 50 anos da RBSTV
Outubro - Concerto de primavera - Samba
Novembro - Preview Mississippi Delta Blues Festival, com Orquestra no UCS Teatro e participação no festival
Gravações
CD's
UCS - Orquestra Sinfônica (2014), sob a regência do maestro Manfredo Schmiedt
Abertura da ópera Don Giovanni, de Wolfgang Amadeus Mozart
Concerto para piano e orquestra em lá menor (solista Olinda Alessandrini), de Edvard Grieg
Sinfonietta prima, de Ernani Aguiar
UCS - Orquestra Sinfônica (2017), sob a regência do maestro Manfredo Schmiedt
Abertura festiva (obra alusiva aos 50 anos da UCS), de Christoph Küstner
Rapsódia Nazaretheana para piano e orquestra (solista Olinda Alessandrini), de Alfred Hülsberg
Suíte Nº2 para orquestra de câmara, de Heitor Villa-Lobos
Hino da UCS: In Altum Ducit (letra de José Clemente Pozenato), de Gilberto Salvagni
DVD
Quadressencias, de Daniel Wolff, com regência do maestro Manfredo Schmiedt e coreografia de Ney Moraes
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