À porta da casa de madeira que abriga uma agropecuária, que também faz as vezes de armazém para os moradores de Cazuza Ferreira, o assunto é o nome que deveria ser dado para a avenida que passa em frente, quando os canteiros ficarem prontos.
– Eu acho que tinha que ser o da tia Tilda. Era o sonho dela – defende o aposentado Alvori Camargo, 76.
– Pois eu acho que deveria ser o do seu Télio, que fez muito por Cazuza Ferreira – argumenta a dona da agropecuária, Juliana Cardoso, 46.
Sem consenso, vendedora e cliente concordam ao afirmar que o distrito de São Francisco de Paula, localizado a 115 quilômetros da sede do município, está longe de retomar aqueles tempos de prosperidade vividos na época da tal dona Tilda e do tal seu Télio, quando a extração de araucária, o chamado “ouro verde”, era o motor da economia.
– Cazuza já teve posto de polícia, hospital, cinema. Chegou a ter duas madeireiras e 21 serrarias. Mas tudo mudou no final dos anos 1960, quando as plantações de araucária foram praticamente dizimadas sem nenhuma responsabilidade ou fiscalização – conta Alvori.
Hoje domicílio para pouco mais de mil habitantes, a maior parte de idosos, morar em Cazuza Ferreira implica mais dificuldade do que benefícios. Não há policiamento próximo, não há indústria, faltam oportunidades de emprego e a má condição das estradas é um problema que se arrasta por décadas. De tempos em tempos, volta à tona o desejo de parte da comunidade de desvincular o distrito de São Chico para anexá-lo a Caxias do Sul, tema que já foi tratado em diversas assembleias reunindo moradores e autoridades, porém sem definições. A realização de um plebiscito, em 2017. foi barrada pelos juízes do Tribunal Regional Eleitoral.
Neste sábado, contudo, o clima é festivo. Mais uma vez, a vila está preparada para celebrar seu orgulho maior, que lhe confere a alcunha que a faz conhecida Rio Grande afora: a Terra das Cavalhadas. Neste sábado, em sessões que se iniciam às 9h30min e às 15h, a tradição se renovará mais uma vez.
Há mais de 10 anos a comunidade de Cazuza Ferreira promove a festa das Cavalhadas. Trata-se de uma mistura de encenação teatral e esporte equestre, que representa as batalhas medievais entre cristãos e mouros (ou muçulmanos) e que culminam na conversão dos mouros, marcando a principal vitória do cristianismo e do imperador Carlos Magno sobre os sarracenos, na Península Ibérica, no século 6.
Tradição portuguesa que chegou ao Brasil com os jesuítas, no século 17, as Cavalhadas já foram muito populares em diversos estados do Brasil, mas hoje ocorrem em poucos lugares (a mais famosa é é feita em Pirenópolis-GO, reunindo plateias que beiram 20 mil espectadores por dia). No Rio Grande do Sul, encenações semelhantes costumavam ser feitas em cidades de forte presença açoriana, como Vacaria, Mostardas, Santo Antônio da Patrulha e Caçapava do Sul. Em Porto Alegre, a última encenação das Cavalhadas ocorreu em 1897.
Uma das razões para se manter o costume vivo em Cazuza Ferreira, opinam os moradores, é o gosto da população pelos cavalos, que dividem o protagonismo da festa com os cavaleiros. Outra é o interesse dos mais jovens em manter o vínculo com a terra dos antepassados, uma vez que a maioria dos corredores não mora mais na vila – grande parte vive e trabalha em Caxias do Sul. Também no dia das Cavalhadas deslocam-se até o distrito o povo de localidades ainda mais remotas, como Campestre do Tigre, Fazenda Velha, Pedra Lisa, Espigão Preto e Colônia Felicidade.
– Mesmo muita gente tendo indo embora, as raízes estão aqui. Tu acabas revendo pessoas e renovando laços com famílias que às vezes eu não tenho por não morar aqui há muito tempo, mas que meu pai e meu avô tinham – comenta o cavaleiro Tiago Araújo, 40, vendedor.
Num universo tão pequeno, mesmo quem não veste o azul das tropas cristãs ou o vermelho dos mouros tem suas razões para celebrar a chegada da época das cavalhadas, a cada dois anos. Todo morador tem a encenação ligada a uma memória da infância e guarda a recordação do pai ou do avô que se apresentava (a participação de mulheres se tornou mais comum nos últimos 10 anos, mas hoje elas chegam a ser maioria entre os corredores).
–Faz parte da minha história. Quando vinha para cá nos finais de semana, férias, feriados, sempre gostei muito de assistir as cavalhadas, mesmo sem entender, quando era criança. Eu associava o evento a Cazuza, achava que tinha só aqui. A gente tem a esperança de que essa tradição ainda vá mais longe. Hoje poder ter mulheres e crianças participando acho que é algo que ajuda – comenta a professora aposentada Angela Camargo, 62, esposa de Alvori.
A apresentação é feita na praça em frente à igreja matriz de Cazuza Ferreira, construção imponente que se destaca no quadrilátero formado por um velho hotel, uma bodega, o posto de saúde, um posto de combustíveis e uma dezena de casas. Um sábado de cavalhadas reúne cerca de mil espectadores, entre moradores e visitantes. Ao centro da praça, um terreno com dimensões próximas a de um campo de futebol (80m x 100m) serve de palco para a batalha, que reúne em torno de 40 cavaleiros, além de palhaços e a Floripa, princesa moura raptada pelos cristãos.
Com duração de três horas, as exibições ocorrem pela manhã e à tarde, separadas por um farto almoço para congregar artistas e público. Após, comemora-se a data com jantar e baile no salão paroquial. Nos mais áureos tempos, o evento ocorria no sábado e no domingo, o que exigia o preparo de dois cavalos para cada corredor, a fim de evitar o cansaço dos animais. Já faz alguns anos, porém, que a dificuldade logística e a perda de participantes limitou a apresentação a um único dia, em dois turnos.
— O que mantém é o orgulho de levar adiante uma tradição centenária, que nossos familiares ajudaram a trazer até aqui. É costume cada participante ter na indumentária pelo menos uma peça que tenha pertencido a um antepassado, como uma forma de homenageá-lo – afirma o administrador Diego Zanol, 39.
O bancário Miguel Ballardim, 39, acrescenta:
– A continuidade é muito importante. Hoje estamos um pouco mais fracos, porque a cultura das pessoas já não é tão voltada pra isso. A criançada de hoje em dia não sabe de onde veio um ovo. Elas não se ligam mais no campo, nas festas, no folclore, mas muitas vezes não é porque não gostam, e sim porque não conhecem.
Lanças, espadas e garruchas
Antes que tenha início o embate, as cavalarias mouras e cristãs partem das ruas laterais da igreja e se instalam uma em cada lado da praça, onde são erguidos os “castelos” que representam o quartel-general de cada tropa. O som dos tiros de festim misturam-se aos dos Guizos que adornam os cavalos. A guerra começa com a descoberta de que há um soldado mouro infiltrado entre os cristãos, que logo é abatido. Dá-se, então, o conflito. Os exércitos cruzam armas e se dividem para o enfrentamento com lanças, espadas e garruchas (uma licença poética, uma vez que as armas de fogo só seriam inventadas séculos depois), nos quatro cantos da praça.
Após o entrevero, os embaixadores discutem uma trégua e levam a mensagem aos seus respectivos líderes, que aguardam junto ao castelo. Quando a batalha recomeça, dá-se a cena do rapto de Floripa, filha de um líder mouro que se apaixona por um soldado cristão. A história se encerra com a vitória cristã e a conversão dos mouros ao cristianismo, em cerimônia simbólica realizada na igreja que marca também o fim da encenação.
Uma festa de todos
Além de estimular o convívio entre diferentes gerações e promover o retorno daqueles que deixaram Cazuza Ferreira para ir atrás de novas oportunidades em outras bandas, as Cavalhadas também celebram a união de raças após décadas marcadas pelo preconceito da elite branca contra negros e “amarelos”, como eram chamados os brancos pobres, normalmente agricultores (amarelos pois tinham a pele queimada do sol, devido ao trabalho no campo).
Ao longo das primeiras décadas do século passado e mesmo no começo da segunda metade, o distrito de São Chico chegava a ter três clubes sociais (de brancos, amarelos e negros) que realizavam suas festas segregadas. Da mesma forma, também havia as cavalhadas dos brancos e a dos negros, que eram realizadas em dias e locais diferentes. A queda das barreiras do preconceito ocorreram não apenas por evolução no comportamento, mas também pela necessidade de se ter uma comunidade mais próxima – o que nas Cavalhadas refletiu também na inclusão de mulheres e crianças.
– Com o tempo a divisão enfraqueceu e as comunidades foram se integrando, até porque as próprias sociedades foram perdendo muitas pessoas. Claro que ainda havia o preconceito, mas aos poucos foi desaparecendo e já podemos tratar como algo do passado. Hoje as pessoas convivem sem nem lembrar que um é de uma raça e o outro de outra. Todo mundo se trata igual, como tem que ser – comenta a professora e diretora da escola de Cazuza Ferreira, Célia Basso, que também atua como narradora das Cavalhadas.
Outra mudança que ocorreu com o tempo foi que, até 1994, as Cavalhadas eram parte da festa religiosa de Cazuza Ferreira, celebrada anualmente em honra à padroeira do distrito, Santa Maria do Belo Horizonte. A professora Célia explica que, como a realização da corrida dependia do convite – e da boa vontade – de cada festeiro (responsável pela festa religiosa), optou-se por formar uma associação exclusiva para as Cavalhadas, realizando a festa de forma independente a cada dois anos. Por essa razão, oficialmente a festa deste sábado é considerada apenas a 12ª edição.
Serviço
O quê: Festa das Cavalhadas de Cazuza Ferreira
Quando: sábado, a partir das 9h30min (encerramento às 17h30min)
Onde: Praça central de Cazuza Ferreira
Quanto: visitação gratuita (ingresso para almoço a R$ 30 e R$ 15 para crianças)