Caxias do Sul é a cidade das pequenas e grandes invenções. A cidade dos arranha-céus que engolem as velhas casas de madeira. A cidade do aço, do asfalto e da letargia do relógio-ponto. A cidade do alpinista social e sua vaidosa solidão. A cidade dos pés de arar a terra árida de sonhos. Não importa o ponto de vista, haverá sempre alguém disposto a atravessar a multidão na contramão. Haverá sempre alguém que abre a janela disposto a contemplar as nuvens. Feliz do povo que ainda tem subversivos que vislumbram sonhos enquanto fitam o vai e vem das nuvens. E o que dizer dos que inventam um modelo de nuvem?
Num dia desses de saudosa e inebriante memória, lá em 2009, nasceu a ideia de uma editora de livros chamada Modelo de Nuvem. Essa utopia (ou distopia - dependendo do ponto de vista) aparece muito por acaso, como em tantas situações desconexas pelas quais surgem ideias criativas. Afinal de contas, criatividade é a matéria prima da arte. E essa independe do mercado, do preço do dólar, ou mesmo da aprovação ou não da reforma da previdência. É inerente ao homem, é intrínseca e, por isso, tão vital para enfrentar dias e noites arrastadas de tarefas, pressões e tédio.
— Tudo começou na Livraria do Arco da Velha, eu e o Marco tomando café com um casal de amigos, o Cristian Marques e a Bárbara Verza. Falamos para eles do sonho de ter uma editora, em trabalhar com livros. Isso foi no início de 2009 — relembra Camila Cornutti, 37 anos, uma das idealistas da Modelo de Nuvem, professora universitária e coordenadora do Centro de Comunicação da FGS.
Esse é o marco zero da concepção do que viria a ser a editora, empreitada que teve como linha de frente, além da Camila, o poeta e médico do SUS Marco de Menezes, premiado com Açorianos, Germano Weirich, um dos proprietários da Livraria e Café do Arco da Velha, e para fechar o conselho editorial, o fotógrafo Fabiano Scholl. Mas o nascimento oficial está registrado por e-mail, datado em 30 de setembro de 2009, em que, sem edição, nem cortes, Marco e Camila escrevem a Fabiano:
"fabiano, querido, 1. a editora nasceu HOJE. 2. estamos te mandando o arquivo cdr da capa pa tu dar uma olhada e testar umas fontes, pois tu tens bem mais que nós e sabemos da qualidade do teu trabalho.
desculpa a alugação.
abrax
marco/cacá"
Uma editora não é nada sem a voz de vertigem que flui através dos poros do autor. Num livro cabe o intangível, transborda muito do que em realidade refutamos. A vida é um sopro, e desde o lançamento da editora, que literalmente tocou as nuvens com prêmios relevantes, e lançando ao mundo revelações de alto quinhão, passaram-se dez anos. Cerca de 40 livros nesse átimo de imensidão eterna. Porque os livros são ideias e observações do mundo eternizados, desde que não queimados pela fúria dos ditadores que teimam matar sonhos e aniquilar o prazer da fruição artística.
O primeiro deles, curiosamente, foi o livro O fim das coisas velhas, do Marco de Menezes. Por si só um nome sugestivo e profético. Sugestivo porque sendo o início da Modelo de Nuvem, já de cara mostrava qual a identidade da editora. Mesmo sem querer, sem jamais pretender ser referência, o livro foi um marco para a Modelo. E, de forma profética, O fim das coisas velhas, levou o poeta a vencer no ano seguinte ao lançamento, em 2010, ao Açorianos de poesia e livro do ano, um feito inédito até então. Realmente o que era velho havia ficado para trás.
Para quem idealizou a editora sorvendo um café, numa tarde de verão, ver de cara o primeiro livro alcançar a maior distinção do estado, literalmente era chegar às nuvens. Num piscar de olhos passaram-se 10 anos e sem drama, sem colocar na conta da crise das livrarias, sem o recalque juvenil que permeia a cena cultural, oficialmente a Modelo de Nuvem, seja como editora, ou como selo editorial, que estava vinculado a Belas Letras, encerra suas atividades. Pronto. Dito assim soa menos agressivo, e mantém a dignidade do projeto ousado e importante que colocou Caxias no cenário nacional.
— Eu particularmente sempre tive muita satisfação com o trabalho, foi um tempo de descobertas e um grande exercício de autocrítica. Nunca foi a nossa ideia deixar um legado ou fazer história — pondera Marco de Menezes, 50.
Quem sabe, talvez, quiçá em setembro deste ano tenha uma festa comemorativa aos 10 anos da Modelo de Nuvem. Mas enquanto isso, a saber, fechou-se a conta da bodega, e ficam as histórias e as alegrias de publicar uma boa seleta da literatura, mesclando escritores estreantes, como o caso de Natalia Borges Polesso, Maikel de Abreu e César Mateus, e autores de renome e prestígio como José Clemente Pozenato, Paulo Ribeiro e Jayme Paviani.
Aquele instante antes do fim
Toda boa ficção precisa atrair o leitor a ponto dele cravar seus olhos nas páginas e não descansar até o fim. Os pontos de virada da trama são esses elementos de surpresa, estratégicos, para amarrar o leitor. Mas, como na maioria das ações da Modelo, sobrava ousadia e faltava planejamento administrativo.
– Tivemos um administrador conosco, no início, o Cristian Marques, mas não era a nossa área – explica Camila.
E logo em seguida, Marco dá outra pista do descaminho, rindo de si mesmo:
– Há várias formas de se endividar. E uma delas é fazer livros.
Durante o período inicial Marco e Camila resolveram apostar em autores, pagando do próprio bolso as edições dos livros.
– Nós gostaríamos até de ter feito mais isso, só que não tinha como bancar – resigna-se Marco.
Dentro desse nevoeiro e, quase sem perspectivas de seguir em frente, – e antes do derradeiro fim – apareceu uma luz no caminho. E essa luz, como quase tudo na Modelo, veio assim, sem querer. No lançamento de um dos livros do Thedy Corrêa, Marco desabafou com Gustavo Guertler, CEO da editora Belas Letras:
– Cara, vamos fechar a Modelo.
– Como assim? Não fechem antes de vir falar comigo – respondeu, Gustavo, de bate-pronto.
O diálogo descrito por Marco e Camila ocorreu em setembro de 2014 e a partir do ano seguinte, a Modelo de Nuvem deixava de ser uma editora independente, para associar-se à Belas Letras.
– Para mim eles tiveram uma iniciativa de vanguarda ao criar um selo que fomentou uma nova geração de escritores na cidade – reconhece Gustavo, 39.
Marco e Camila valorizam a parceria que se manteve até a semana passada:
– Foi um tempo bem interessante, porque ele nos deixou à vontade para fazer só o que mais gostamos: editar os textos, cuidar das capas, do projeto gráfico. Enquanto que a Belas Letras ficava com a parte burocrática – lembra Marco.
Essa tentativa de levar adiante o projeto Modelo de Nuvem através dessa parceria com a Belas Letras durou de 2015 a 2019 e seguiu firme e forte tendo seus livros reconhecidos por público e crítica, inclusive com prêmios importantes.
— Agora decidimos descontinuar. Nós como editora estamos com outro foco e não estávamos conseguindo dar atenção ao selo como ele merecia — reconhece Gustavo.
Lugar de afeto e costura de sonhos
"E pensou, ser amada era o suficiente". Assim começa o primeiro conto do primeiro livro de Natalia Borges Polesso. Recontar a história não dimensiona a realidade, por maior esforço que se faça. O jogo de cena, em ser amada ou não ser amada, é o mote do conto. "Com o tempo", discorre, "ela viu que aquilo não bastava". Enquanto este texto, era editado, para ser tangível em livro, Natalia estava sendo acarinhada e amada por Camila e Marcos, que dedicavam esforço e ternura para extrair o melhor da autora estreante.
— Conheci melhor o Marco e a Camila durante o processo de edição do livro. Foi uma edição bem assídua, toda semana eu ia lá, sentava e olhava como estava ficando. Eles sempre tiveram muito cuidado comigo, era um cuidado familiar, era uma editora de apartamento — recorda, com carinho, Natalia, 37.
O resultado desse esforço em família, dentro da casa de Camila e Marcos, que a essa altura já havia se misturado ao cotidiano de uma editora, veio com o prêmio Açorianos, na categoria Contos, em 2013, para Recortes para álbum de fotografia sem gente.
— Vibramos muito porque além da Natalia, na mesma noite, a Caroline Milman ganhou Açorianos na categoria Poesia, com o livro Aqui jasmim — lembra Camila.
Para Natalia esse foi o início de uma deliciosa viagem que só tem lhe trazido boas surpresas.
— Sem a Modelo, talvez não estivesse onde estou agora, porque foi iniciativa deles inscrever o livro no Açorianos — reconhece Natalia.
Essa jornada ascendente e surpreendente conduziu a autora de Bento-Gonçalves, mas desde sempre radicada (ainda) em Caxias, a receber dois prêmios Jabuti em 2016, por Amora, categorias Contos e Escolha do Leitor. Ainda este ano, a autora deve lançar seu primeiro romance Controle, por uma das mais editoras mais importantes do Brasil, a Companhia das Letras.
Outra autora premiada da Modelo, Juliana Meira, por Na língua da manhã silêncio e sal, com o Minuano de Literatura, categoria poesia, em 2018, reforça o afeto como elo:
— Eles sempre tiveram cuidado com o livro, como objeto em si, e com o autor. É algo que extrapola o mercado do livro, porque tem um envolvimento emocional — revela Juliana, 38.
O mesmo olhar de ternura pelo trabalho editorial é reconhecido pela escritora e jornalista Daniela Echevenguá cujo livro de estreia Menina da Fazenda com ilustrações de Rita Bromberg Brugger, está praticamente esgotado.
— Me tocou muito a feitura do livro, foi espontâneo e visceral na sua doçura. Quando escrevi a última história chorei copiosamente — recorda Daniela, 47.
A sensatez dos projetos insensatos
Há na arte um quê de vaidade, porque muitos artistas procuram ávidos o reconhecimento. É como se o autor fosse maior do que a sua obra, ou ainda, como se o autor fosse a personificação de um ser mítico e divino, inalcançável. No entanto, na Modelo de Nuvem o improvável prevaleceu sempre, assim como a insensatez de outrora acabou por travestir-se de sensatez.
Doutores em gestão jamais compreenderiam o modus operandi da editora, porque o modelo sempre foi tocar o intangível. Mas, afinal de contas, como nasceu e como foi cunhada a linha editorial - o grande trunfo - da Modelo de Nuvem?
– Eu acredito que os prêmios recebidos logo no início e a preocupação com o objeto livro, em ter um produto bem acabado, fez a linha editorial da Modelo – observa Germano Weirich, 37, membro do conselho editorial do selo.
O quarto elemento desse núcleo duro da Modelo, Fabiano Scholl, tira da cartola um elemento bem especial, que consoante ao afeto e amor por livros e por pessoas com suas histórias na cabeça, tornaram quase sem querer a Modelo de Nuvem referência no mercado editorial do sul do Brasil.
– O ponto chave era a diversão! Era um prazer fazer cada um dos livros, tantos autores tornaram-se amigos da gente. Minha amizade com o Marco e a Camila é de dez anos, vem desde o nascimento da editora – confessa Fabiano, 38, fotógrafo, um dos responsáveis pela maioria das capas, e o elo de ligação com o mercado de Porto Alegre, sobretudo na saudosa e extinta livraria Palavraria.
Talvez esse eterno caminhar sobre a corda bamba para atravessar penhascos deu à Modelo de Nuvem coragem para ousar. E mesmo que de forma irresponsável sob o ponto de vista administrativo e contábil, alcançar feitos notáveis e ter peito para pôr na prateleira das livrarias um autor marginal do quilate de Odegar Junior Petry (1966-2014), que morreu aos 51 anos e teve seu último livro, O rol dos insensatos, publicado pela Modelo, em 2011.
– É uma insensatez, é um esforço muito grande o cara querer fazer poesia hoje em dia. Mas existem os insensatos que continuam a fazer poesia – declarou Petry, em tom filosófico, no vídeo de divulgação para O rol dos insensatos.
O livro é um dos mais significativos para o conselho editorial, era uma aposta para recolocar Petry no rol dos escritores, porque ele viveu literalmente o fazer poético – diferentemente de tantos outros – cuja obra é ofuscada por sua oblíqua vaidade. Ou quem mais poderia cunhar a deliciosa e provocativa expressão pós-moderna: “Caminhar move o chip da poesia”? Só o Petry.
Antes de O rol dos insensatos, o poeta havia lançado outros dois livros, com quase uma década de distância entre um e outro, Ode Petry (edição do autor, 1996) e 3 (Editora Liddo, 2005, em parceria com Dinarte de Borba e Albuquerque e Fabiano Finco).
Sobre virulência e deboche
Quando Vivi Pasqual começou a distribuir por aí suas obras, muitos artistas plásticos da Pérola das Colônias, torceram o nariz, outros ridicularizaram, muitos ainda hoje dão de ombros. Cena típica, aliás, que em muito fere a própria cena cultural da cidade. Mas enfim, aos poucos Vivi passou a ser referenciada, premiada, bem quista e celebrada para além dos limites de Caxias. A artista plástica não se importa com esse diz-que-me-diz. Tanto é que essa virulência de menina em tintas e cores foi parar em um livro, editado pela Modelo de Nuvem.
— Cara, a história do livro é muito louca. Eu sempre que viajo faço uns rabiscos das obras que vejo, como referência mesmo. Mas faço do meu jeito, né! Aí, ficaram bacanas e fui passando alguns a limpo. Só que perdi a primeira leva que fiz porque esqueci num táxi — diverte-se, Vivi, 53.
Depois de refazer-se do susto e das obras perdidas, a artista plástica debruçou-se na feitura de mais retratos.
— Fiz três blocos de 100 páginas cada um e acabou virando um recorte da história da arte com os meus eleitos. O livro ficou lindo — conta Vivi.
Vivi uma história da arte, levou o prêmio Açorianos de livro especial em 2014.
— A premiação deixa a gente com um rabo de vaidade, né, mas logo some, porque pra mim importa mais o fazer — observa Vivi.
Muda o cenário, mudam as estações, muda a forma de expressão artística, mas as pessoas nem sempre. O mesmo deboche, a mesma implicância que Vivi sofreu e aguentou no osso, respondendo meio que sem querer, pintando e resignificando o caos, os amigos Maikel de Abreu e César Mateus também sofreram. E quem daria importância para uns caras que passavam escrevendo e editando seus textos enquanto bebiam cerveja gelada no antigo Leeds? Ou esse negócio de ler os beatniks fica só na frieza da fruição? Ah, para, né. Mas, enfim, aos olhos da intelectualidade fantasiada, Maikel e César tinham perfume de virulência juvenil, e só.
— Nós éramos iniciantes, éramos crus, e o Marco sentou com a gente e revisou linha por linha, dando sugestões pra gente. Pra mim essa foi a parte mais importante do trabalho — reconhece César, 35.
O livro em questão, a que se refere César, é Couro legítimo, escrito em parceria com Maikel. Um retrato ora nu e cru, ora ficcional e dialético, de Caxias e seus personagens sempre simbólicos, lançado em 2012.
— Eu conhecia a Camila, mas não éramos da mesma turma. E o Marco eu só conhecia de vista. Lembro que vi o Marco no lançamento de uma revista, no Havana, e falei pro César: "Olha lá, aquele cara é o Marco". Falamos com ele sobre lançar um livro e daí marcamos outro dia pra conversar — recorda Maikel, 37.
Desse acaso surgiu a ponte para colocar em cena mais um livro improvável, na linha do insensato mas necessário, bem como ensinou Petry.
O melhor ponto final são as reticências
Essa doce insensatez, essa inquietude, essa coragem de remar através dos descaminhos da certeza e da incoerência dessa cidade autofágica conduziu a Modelo de Nuvem a conquistar espaço merecido no mercado editorial. Ficam as histórias, tantos outros projetos por fazer, mas a certeza de que o propósito cumpriu-se. É chegado o tempo de o apartamento no centro de Caxias deixar de receber autores e seus personagens um tanto cômicos, histriônicos, subversivos e diletantes, e quase sempre amáveis e dramáticos.
Saem de cena esses guris e gurias que apinhavam o apartamento de sonhos e inquietudes, e entra em cena o Marco e a Camila, em sua porção papai e mamãe da doce e sempre divertida Cecília. A vida segue, à espera de que a literatura possa sempre dar conta de reunir essa turma, seja dentro ou fora dos livros. Lendo a apresentação do nosso mais conhecido autor, nosso homem no Oscar, por causa de O Quatrilho, no livro Despique, em parceria com Leonor Bassani, encontra-se o melhor resumo do que está por vir. Com sua licença, professor Pozenato, para usar o texto fora do contexto, mas por um bom pretexto:
"Aqui vão muitas vírgulas sinalizando diferentes caminhos e passagens. Pô-las a público é sinônimo de que se chegou ao ponto de colocar um ponto. Até porque a melhor maneira de dar um ponto final é com três pontos... Para avisar que a caminhada vai continuar. O que merece (ou não merece?) um ponto de exclamação!"
E tudo isso foi verdade, atestado e reconhecido, sem rubrica em cartório, mas na confiança do fio do bigode.