Pesquisador da história de Caxias do Sul, autor de vários livros, barbeiro, alfaiate, cronista da cidade e uma série de outras atribuições e ofícios fazem de João Spadari Adami (1897-1972) uma referência quando o assunto é o passado do município. Entre tantas colaborações em periódicos locais, destacamos hoje uma deliciosa histórica publicada na edição de agosto e setembro de 1962 do Boletim Eberle.
O relato “Transviados Caxienses do Século 19” trazia como subtítulo “Homenagem ‘al nonno’ José Benettti” e fazia um comparativo entre os então rebeldes e transviados daquele início dos anos 1960 com os “baderneiros” da Colônia Caxias do final do século 19. Confira abaixo parte do texto original. Na sequência de fotos, o texto original nas páginas do Boletim Eberle.
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No meu contínuo vasculhar do passado caxiense, tenho encontrado documentos de assuntos interessantes. Alguns com certas propriedades humorísticas até, e que vale a pena torná-los conhecidos do público, não como fatos históricos, mas, sim, pelo espírito de boemia que caracterizava a gente caxiense daquele tempo. O assunto do presente trabalho é pitoresco e não atinge moralmente nem seus protagonistas, nem seus descendentes e nem à população da Pérola das Colônias.
No documento que motivou esta crônica são citados como autores de “distúrbios e desrespeito” aos bons costumes da então Vila de Santa Teresa de Caxias os menores Angelo Muratore, Máximo Sartori, Antônio CeoIa, Francisco Adami, Reinaldo Bergamaschi, José Benetti, Jerônimo Micheleto, Alberto Sartori e Antônio Manfro. E, como no citado documento não fosse especificada a categoria de delito que haviam eles cometido, resolvi perguntar ao quase nonagenário José Benetti, único sobrevivente dos citados então imberbes, que espécie de façanha haviam cometido.
A princípio, disse-me ele não ter participado de tal proeza. Porém, acabou por contar-me o seguinte fato: Que certa noite, lá pelo longínquo ano de 1890, estando ele em posição de “of side”, devido a uma cervejada que haviam tomado algures da Vila, ao passarem pelo mercadinho da imigrante Magdalena Brunetta, sito no arrabalde de São Pelegrino, subtraíram uma cesta de ovos de galinha, porém “fresquinhos da Silva”, que estava exposta à porta do mesmo. Se dirigiram ao centro da sede “Dante”, pois a vila era também assim denominada, e atiraram em fachadas de casas, e alguns dentro delas mesmo, aqueles derivados das penosas.
Os prédios mais atingidos foram os de Germano Parolini, hoje Casa Renner; Francisco Castagna, hoje Caixa Econômica Federal; Angelo Chittolina, hoje Livraria Calcagnotto; Antônio Lesso, vulgo Verona, por ser natural daquela cidade da Itália, hoje Loja Sibrama; Salvador Sartori, hoje Cine Central; Luiz Faccioli, hoje farmácia Santa Maria; e Café Garibaldi, hoje Edifício Galeria Auto João Muratore, em construção. O Café Garibaldi, principalmente, ficou lambuzado de gemas e claras de ovos, tanto na parte externa como internamente e com alguns vidros quebrados. Ninguém, porém, pode identificar aqueles “delinquentes” (segundo são classificados no referido documento), por ter sido aquela brincadeira de mau gosto levada a efeito numa noite muito escura, não haver luz pública ainda em Caxias naquela época e ter sido uma molecagem relâmpago. Mas como, segundo o ditado, o “Diabo ensina a fazer a panela, mas não a tampa”, aconteceu que uma moça que parava na casa de Germano Parolini, e que sendo namorada de Angelo Muratore e estava sendo trocada por outra, sabendo ela quem foram os heróis da citada façanha, denunciou-os. Imediatamente, as autoridades competentes tomaram as providências cabíveis e instauraram o respectivo processo contra os denominados transviados.
Esteve presente àquela audiência o sr. João Muratore, pai de Angelo e tronco dos Muratore de Caxias, o qual intercedeu em favor dos referidos denunciados, e disse que, de fato, os ditos menores haviam cometido tal falta, mas que não houve propriamente ofensa à moral de quem quer que fosse. Apenas danos materiais e facilmente recuperáveis, e que por isso pedia às autoridades e aos prejudicados com aquele ato praticado por seu filho e seus cúmplices que fossem punidos, sim, mas não com tanta severidade. Ficou assentado de todos os delinquentes pagarem a quantia de dezesseis mil e duzentos réis e sofrerem a pena correcional de duas horas de prisão.
Foram reunidos, depois, na casa do Delegado de Polícia, cidadão Benjamin Côrtes Rodrigues, sita a então Rua Silveira Martins, hoje Av. Júlio de Castilhos, para dali serem conduzidos ao xadrez, que ficava ali no local da hoje Igreja Metodista. E, quando estavam no ponto onde está hoje erigida a Estátua da Liberdade (por terem previamente combinado), um dos referidos transviados gritou: “Coraggio soldai che ascapon”. E numa corrida veloz, deixaram os dois policiais que os deviam conduzir ao xadrez, dirigiram-se ao mesmo xadrez e esperaram que aqueles mantenedores da ordem pública os metessem nas grades. Porém, tiveram de esperar um bom pedaço de tempo, pois um deles era cego de um olho, e o outro, coxo de uma perna.
Afinal, foram encarcerados e lá permaneceram pelo espaço de hora e meia. Não completaram as duas horas de cadeia, conforme haviam sido sentenciados, graças à intervenção do cidadão Rodolfo Felix Laner, que era, naquele tempo, “Fiel da Posta” da Vila. Laner os conduziu à sua residência, que ficava no local do hoje Centro Telefônico, portanto, próxima da cadeia, e os obsequiou com bons vinhos, salame e pão. O dito ágape entre aqueles transviados e o referido Coletor Federal Rodolfo Felix Laner durou até altas horas da noite daquele memorável dia. A maior parte dos réus não tinha, na ocasião da sentença, a respectiva parcela estipulada na condenação, precisando ir buscá-la em casa. Tiveram, porém, que deixar os chapéus na delegacia, como garantia que voltariam. Ali está uma interessante passagem dos mocinhos daquela época, que também, como hoje em dia sucede, faziam-se de engraçadinhos, à semelhança dos transviados modernos. (João Spadari Adami, agosto de 1962)
O cenário da traquinagem
Na foto que abre a matéria, registrada por Domingos Mancuso em meados de 1908, vemos alguns dos prédios citados por João Spadari Adami em seu texto de 1962, reproduzido acima. Trata-se do trecho da Avenida Júlio de Castilhos (a antiga Silveira Martins) em frente à Praça Dante, com os negócios da família Sartori (posterior Cine Central, em primeiro plano) e a residência e Fábrica de Salame e Presunto de Angelo Chittolina (atual Super Andreazza). Entre os dois estão os casarões que cederam espaço ao Condomínio Galeria Auto João Muratore (o famoso Caixa de Fósforo) e à Galeria do Comércio, ligando a Júlio à Pinheiro Machado.