Não conheci o Paulo Cancian jornalista. No final dos anos 1980, nos meses de janeiro e fevereiro, Cancian e sua família eram nossos vizinhos de praia. Daqueles que dividiam espaço nas areias de Areias Brancas e compartilhavam guloseimas, amenidades e fitas cassetes do Abba junto ao muro nanico de casa – em 1988, as grades e cercas elétricas ainda não isolavam os veranistas.
Sabia, do "alto" de meus 15 anos, que ele escrevia e era "da imprensa, do ramo da comunicação", áreas que sempre me interessaram – e que dali a pouco definiriam o rumo profissional do então estudante do Colégio La Salle. Quando finalizei o Segundo Grau – sim, não exisitia Ensino Médio em 1990 e esta é uma coluna de memórias –, tinha quase certeza que o jornalismo seria a opção. E o teste, para ver se era isso mesmo que eu queria, antes de prestar o vestibular, chegou por intermédio do “vizinho de praia”.
Cancian comandava, em 1991, a redação da icônica Folha de Hoje, a duas quadras de onde o aspirante a jornalista morava, na Rua Tronca, 3.004. Em março daquele ano, pintava uma vaga no arquivo fotográfico – e lá fomos nós, viver o dia a dia real daquilo que se via apenas nas novelas e filmes. Eram menos de cinco minutos até o trabalho, e "o novato do arquivo" saía diariamente a pé para atuar na separação de fotografias, organização de copiões, envelopes e negativos, sempre no horário entre 17h30min e 22h30min, quando a redação "fervia".
Cancian – agora não mais o vizinho de praia, mas o editor-chefe do jornal que conseguiu o primeiro emprego para o filho do vizinho de praia – parecia viver em função do relógio. Coisa de jornalistas, dizia-se. Não tinha horários, nem folgas, nem finais de semana, tamanha a quantidade de demandas. Ficava, oficialmente, numa espécie de aquário envidraçado num canto da redação. Porém, lembro claramente de vê-lo circular por entre todos, cumprimentar a todos, saber de todos, não apenas da pauta do dia, da manchete, do texto que teria de ser entregue dali a 15 minutos para não atrasar a rodagem, do furo que daria na concorrência na manhã seguinte.
Em todas esses momentos, não era um chefe que eu, aos 18 anos, enxergava ali. Talvez por sua postura ter sido sempre a de estabelecer pontes, não barreiras. Com diálogo, respeito, olho no olho. Perante todos, sem distinção. Foram três meses como arquivista da Folha de Hoje, de 3 de abril a 1º de julho de 1991. Porém, pelos 27 anos seguintes, o exercício do jornalismo nos aproximou em diversos outros momentos, profissionais, festivos, dramáticos. Em todos eles, o indefectível e carinhoso "Ô, professor!" abria a conversa. Sim, o jornalista que tanto trabalhou e batalhou pela comunicação e seus profissionais nos últimos 50 anos referia-se aos amigos de todas as idades como se estivesse sempre a assimilar algo.
Verdadeiros mestres são assim: aprendizes eternos. Desde a manhã desta quinta-feira, ainda mais...
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