Há 40 anos começava a se desenhar a história do local que, desde então, consolidou-se como abrigo de boa parte da história imagética e documental de Caxias do Sul. Em 1976, mais especificamente em 5 de agosto, o Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami tinha seu decreto de criação assinado pelo prefeito Mario Vanin - inicialmente, o órgão era atrelado à antiga Secretaria da Educação e Cultura e ao Museu Municipal.
Professora concursada pelo Município, Elenira Prux, 49 anos, está à frente da instituição desde 2013, quando foi convidada pelo então secretário da Cultura João Tonus. Com formação em História e passagens pela Biblioteca Pública Municipal, ela também atuou como secretária do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural - Compahc (1998 a 2004) e integrante da Comissão Executiva para Proteção do Patrimônio de Caxias do Sul (2005 a 2012).
Na entrevista a seguir, Elenira recorda de vários momentos emblemáticos do Arquivo e antecipa algumas atividades deste ano de aniversário. Entram aí a disponibilização online de parte do acervo e um vídeo mapeando toda a trajetória do lugar. Nesse último devem entrar depoimentos de professores, historiadores, ex-diretores e pessoas diretamente ligadas à memória local, como Loraine Slomp Giron, Maria Frigeri Horn, Tania Tonet, Liliana Henrichs, Juventino Dal Bó e Maria Beatriz Pinheiro Machado, entre outros.
Pioneiro: Como teve início sua ligação com a área?
Elenira Prux: Eu iniciei no Município como professora e, em 1992, assumi uma vaga como assistente administrativa na Biblioteca Pública Municipal, onde atuei por cinco anos. Eu já cursava História e fui trabalhar ao lado do meu então professor, Juventino Dal Bó. Este contato e o que aprendi com ele despertaram meu interesse pelo patrimônio da cidade. Em 1997, o Juventino reassumia a direção do Museu e Arquivo Histórico Municipal (ainda ligados oficialmente, mas separados fisicamente) e me convidou para trabalhar no Arquivo, que recém havia sido transferido para a atual sede. Eu lembro como se fosse hoje: entrei no andar térreo, tinha muito por fazer, o pessoal ainda não tinha conseguido organizar o acervo recém-transportado. Naquele período foi criada a Secretaria da Cultura (desmembrada da Educação) e o Arquivo foi desvinculado do Museu Municipal, passando a ter a denominação de Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami. Também foi criado o cargo de direção, ocupado por Maria Beatriz Pinheiro Machado, com quem passei a trabalhar diretamente, desenvolvendo atividades técnicas e administrativas e elaborando projetos.
Em 1976, quando o Arquivo foi oficialmente criado, o que existia de acervo realmente importante?
Antes mesmo da criação oficial, em 5 de agosto de 1976, o acervo começou a ser formado no prédio anexo ao Museu Municipal. Lá já estavam os documentos da antiga Intendência Municipal e da prefeitura, que, em 1975, havia sido transferida para o atual Centro Administrativo. Em 1977, a doação dos documentos preservados por João Spadari Adami deu à instituição um caráter peculiar, ou seja, de preservar acervos públicos e privados mutuamente. Adami faleceu em 1972, e a família, após vários contatos, doou os documentos textuais e iconográficos por ele preservados no Centro Informativo da História Caxiense, que funcionava junto à sua barbearia, defronte ao Eberle da Sinimbu, entre 1958 e 1972. A estes foram sendo incorporadas muitas outras doações. Já em 1979, diante da ameaça de demolição do prédio conhecido como "antigo Hospital Carbone", a equipe do Museu e do Arquivo deu início a uma campanha para a sua preservação, com o objetivo de abrigar o acervo documental da cidade. Artistas, arquitetos e empresários se uniram à campanha. Foi a primeira negociação entre poder público e empresas privadas, que deu origem à legislação sobre o uso de potencial construtivo em Caxias do Sul.
Como se deu a ocupação da nova sede?
O prédio passou por várias reformas na década de 1980, e, devido um incêndio na prefeitura, foi ocupado pela Secretaria da Educação de 1992 a julho de 1996. Nesse período, foi constatada a necessidade de realizar reforço estrutural interno. Em 1996, as verbas permitiram a realização das fundações e do reforço metálico apenas no andar térreo. Um laudo emitido pelos técnicos da prefeitura apontava para a necessidade de troca do barroteamento do 1º e 2º pavimentos e a continuação da estrutura metálica nos outros andares. Mesmo assim, a equipe decidiu pela mudança, o que ocorreu em outubro de 1996. No final de 1998, veio a notícia de que o prefeito Pepe Vargas havia destinado os recursos necessários para a recuperação definitiva do prédio. De março a novembro de 1999, todo o acervo foi transferido para um espaço vizinho, cedido gentilmente pela empresa Brasdiesel. Foram finalizadas as obras de reforço metálico, melhorias nos banheiros, nas instalações elétricas e nova pintura no prédio preservado. Em 7 de dezembro de 1999, finalmente foi entregue à comunidade o prédio adequado para abrigar o acervo documental da cidade.
Arquivo Histórico Municipal nos anos 1980: um prédio em reformas
De 1976 para cá, quais as principais conquistas (e contribuições) do Arquivo para salvaguardar a memória da cidade?
O trabalho em conjunto com o Museu Municipal foi extremamente importante. Juntamente com as peças do Museu, eram recebidos documentos e fotografias, que, aos poucos foram formando um grande acervo. Em 1980, foi criado também o Banco de Memória Oral, com o registro de entrevistas com pessoas da comunidade, tanto personalidades quanto cidadãos comuns. A partir desse acervo, foram realizadas muitas exposições, o que fazia com que as pessoas se sentissem parte da história da cidade, e assim mais contribuíssem com doações. Como resultado de todo o trabalho desenvolvido, a instituição passou a publicar os boletins Cenas, Memória e Ocorrências, que abordavam aspectos da nossa história e até hoje permanecem na lembrança de muitos. Outra grande conquista foi garantir a preservação e doação do atual prédio ao poder público, condicionando-o à salvaguarda do acervo documental da cidade.
Um relicário para Lucia Carbone
A diretora defronte à sede do Arquivo Histórico Municipal, casarão que abrigou a antiga casa de comércio de Vicente Rovea e o Hospital Carbone. Foto: Roni Rigon
O processo de doação de fotos e documentos ao Arquivo tem aumentado nos últimos anos? As pessoas estão conscientes de que doar o material ao acervo não é perder as fotos, mas sim garantir a sua permanência?
O Arquivo Histórico recebeu doações importantes em todos os períodos. Poderíamos citar inúmeras ao longo dos anos, como acervos de fotógrafos, de famílias e instituições. Só em 2015 recebemos duas doações de cartas de famílias extremamente significativas para a história da cidade. Aos poucos, as pessoas foram percebendo que um documento ou uma fotografia doado e disponível para a pesquisa pode fazer parte de um livro, de uma exposição, tanto no município como fora dele. E essa é uma conscientização que temos de fazer diariamente. É muito gratificante quando uma pessoa encontra uma foto/documento de sua família e que nem imaginava ali ter sido preservado - porque em algum momento alguém resolveu retirar de suas gavetas ou armários e socializar aquela informação.
Doações enriquem acervo do Arquivo Histórico e auxiliam pesquisas
Como o Arquivo Histórico Municipal dialoga com outros órgãos e entidades de caráter histórico-cultural, daqui e de fora?
Procuramos sempre realizar capacitação e aprimoramentos em parceria com o Museu Municipal, o MusCap, o IMHC/UCS, incluindo instituições como a UFRGS, a FURG (Universidade Federal de Rio Grande) e a UFSM (Santa Maria), que possuem cursos de Arquivologia. A digitalização de mais de 500 mil páginas de jornais e mais de 200 mil páginas de documentos públicos foi realizada em parceria com o Centro de Memória da Câmara de Vereadores. Já a restauração do álbum fotográfico Recordação das Antigas Colônias foi feita em parceria com a Associação dos Amigos da Memória e do Patrimônio (Moúsai), via LIC Municipal, em 2014-2015. A informatização foi viabilizada pelo projeto aprovado pelo Programa Caixa de Adoção de Entidades Culturais, em 2007, e a instalação de sistemas de arquivos deslizantes e climatização do setor Fototeca por projeto aprovado pelo BNDEs, em 2008. Em relação a assessorias, muitos arquivos da região e instituições da cidade (quartel, CIC, Clube Juvenil) nos procuram para realização de diagnósticos e/ou capacitação para a preservação de seus acervos.
O lançamento do livro 'O Instante e o Tempo', sobre a trajetória dos fotógrafos de Caxias entre 1885 e 1960, foi a concretização de um sonho alimentado ao longo dos últimos 40 anos. Qual a importância desse tipo de registro?
Desde que a instituição recebeu as primeiras fotografias de doação, havia esse entendimento de que era necessário realizar o mapeamento da produção fotográfica de Caxias e região. E muitos projetos e parcerias foram realizados desde a década de 1980 nesse sentido. Quando percebi que havia uma verba disponível para publicações que poderia ser utilizada na concretização desse sonho, parte da equipe passou a dedicar-se à sua concretização. Como a verba permitiu a publicação de apenas 300 exemplares, a proposta foi de buscar recursos para uma segunda edição. E também porque sempre há a necessidade de realizar algumas correções, ampliação de dados, inclusive com a parceria da comunidade, que reconhece pessoas ali retratadas e até então não identificadas.
Livro O Instante e o Tempo: uma cidade, múltiplos olhares
Acervo documental do Município ocupa o casarão secular da Av. Júlio desde 1996. Foto: Roni Rigon
Que ações costumam ser feitas para aproximar a comunidade do Arquivo? Escolas costumam agendar visitas?
Não possuímos uma atividade educativa para as escolas de ensino fundamental e médio estritamente pela falta de um professor capacitado e designado exclusivamente para essa ação. Eu mesma realizo o atendimento a alunos da UCS, FSG, Senai e outros grupos interessados. Também a estudantes de Ensino Médio quando o professor já tem um trabalho desenvolvido na escola, porque sem isso os documentos não têm sentido para o aluno. Além do atendimento ao pesquisador (alunos, mestrandos, doutorandos e comunidade em geral), há serviços que aproximam muito a comunidade do Arquivo Histórico. Um deles é a emissão de certidões para fins de aposentadoria. Elas são disponibilizadas a familiares de fornecedores de uva das antigas cantinas, a alunos da rede pública municipal e a menores que trabalharam na antiga Comai, o que demanda muita pesquisa. Outro serviço é a disponibilização de antigos projetos arquitetônicos do período anterior a 1950 até 1999, para fins de adequações do PPCI.
O pioneirismo da família Rovea
Que atividades estão previstas para o decorrer deste ano?
Para a solenidade de 5 de agosto está prevista a apresentação do Coro e da Orquestra Municipal, que também completam 40 anos, e o lançamento de uma publicação inédita em parceria com a Editora Belas-Letras. Também um audiovisual contando a trajetória da instituição, em parceria com a Spaghetti Filmes, e a disponibilização de parte do acervo na internet através do Programa Ica-AtoM (reconhecido pelo Conselho Internacional de Arquivos), em parceria com o setor de informática da prefeitura. Mas a maior ação planejada é a incorporação do acervo do fotógrafo Ary Pastori ao acervo público municipal, ainda em processo de viabilização. Além disso, em parceria com o Mestrado em História e o IMHC, da UCS, e com o Centro de Memória/Escola do Legislativo, da Câmara de Vereadores, planejamos um curso sobre a história do município. Ele deve iniciar na Semana de Caxias, em junho, quando ocorre também o lançamento do livro Ecos do Passado, de Marcos Fernando Kirst.
Quais os desafios do Arquivo a partir desse aniversário de 40 anos?
O principal é a organização física e a descrição intelectual dos acervos privados de acordo com as Normas Brasileiras de Descrição Arquivística, uma vez que não possuímos nos quadros do município o cargo de Arquivista (nível superior). Além disso, o gerenciamento do acervo digital, a matriz digital em tiff/jpg, a inserção de metadados e a implementação de um site como forma de socializar a informação, facilitando o acesso aos pesquisadores de outras cidades do país e também da Itália.