
A gente consegue reparar no cabelo mal cortado de alguém, na roupa que não combinou, na gordurinha fora de lugar. Na namorada nova, na antiga namorada, na foto de perfil. No que alguém está bebendo, para onde foi viajar, o que gosta de comer. A gente repara, mesmo que de forma fugaz, em mesas lindas de café da manhã que amigos postam, numa roupa nova, em quem comprou um incrível iPhone X. Recebemos muitos estímulos, muita informação (!!!) e fazemos o possível para dar conta e estar atualizado dentro desse universo.
Mas isso não nos faz bons observadores, não nos torna solidários e empáticos com quem está à nossa volta. A gente não sabe que o cabelo desarrumado é de alguém que passou a noite no hospital com um familiar doente e sequer teve tempo de se olhar no espelho antes de cumprir as obrigações laborais. A gente senta ao lado de alguém durante oito horas diárias e não tem a capacidade de perceber as mazelas de quem nos rodeia. Sim, todos enfrentamos batalhas diárias, mais ou menos duras. É triste admitir, mas não olhamos para aquilo que importa, não assumimos a responsabilidade de colocar uma lupa naquilo que é óbvio e deveríamos ver. Porque depois que virmos, não poderemos dizer que não sabemos.
Não existem palavras que possam descrever a indignação/tristeza/impotência que o rapto, estupro e morte de Naiara provocaram. A invisibilidade da menina de sete anos ainda está latente, e é triste saber que apenas depois dela ser vítima de um crime brutal é que passou a ser vista. Percebida. Porque ela ia a pé sozinha para a escola com frequência, cedo da manhã, desprotegida, mas a vida de todos seguia, como quase sempre.
Só que é impossível neutralizar a violência – que atravessa nosso cotidiano –, sabendo que uma criança é estuprada a cada cinco dias em Caxias. Em 2017, 77 crianças do município sofreram violência sexual, de acordo com dados divulgados pela Secretaria de Segurança Pública do Estado. A maioria provocada por parentes ou pessoas próximas da família, a maior parte sequer é registrada.
Temos que parar de olhar para as miudezas dos outros e começar a assumir a parcela de responsabilidade no mundo que nos cerca. Precisamos olhar para as crianças – as nossas e as dos outros. Que essa tragédia, ao menos, seja uma possibilidade de extrair alguma lição de um momento tão horrível e doloroso: honrar a memória da garotinha, impedindo que outras Naiaras não sejam notadas, mesmo entrando em nosso campo de visão.