Oi, sou eu, você sabe quem eu sou. Sabe meu nome, minha idade, conhece meus sonhos, me viu crescer. Esteve lá, me apresentou aos outros como meu quase pai, e, agora, você me viu, me quis mulher. Não, não, não!
Não posso crer, eu sou sua cria, sua criança, sua garotinha, um dos seus orgulhos. Não, não aja como se eu fosse aquelas que não habitam o cerne da nossa família. Pensei que eu era diferente. A gente tem essa mania besta de se enganar, de achar que interesse é afeto, de pensar que se o mal não te habita, não habita os outros. A gente se engana, né?
É que, de fato, eu não sou uma delas ou talvez eu seja. Bom, não importa, até porque, pra você eu sou nada, sou só um corpo desde que nasci mulher. 37 anos tendo um alvo no meio das pernas. Não há onde eu vá que não haja perseguição. Mas, a sua, confesso, eu não esperava.
Você me traiu. Traiu tudo o que sou, toda a minha existência e, em máxime, traiu profundamente uma garotinha risonha de cabelos cheios e crespos que pensou o melhor de você e te viu como espelho, um norte.
Sim, você me traiu, quando, com a cabeça cheia de álcool, se traiu. Você não segurou mais a máscara do cara legal, certo? Sua voz, seus gestos e suas intenções me assombram nesse momento, mas não serão fantasmas no meu futuro. Eu não permito! Presente e futuro se cruzam, mas não são iguais. Não pra mim. No passado eu era a vítima, no futuro eu sou a dona de tudo que me há. Mexeu com a pessoa errada, querido.
Eu confiei em você e você era meu inimigo, o pior deles. Deixei que, com seus braços sujos, me embalasse, me guiasse. Cri em suas palavras, segui seus pés. Vejo que cirandei com o diabo, e, no final, só ardi no inferno mesmo.
Pensando agora, deveria ter confiado no meu desconforto. Eu senti tantas vezes o olhar pecaminoso, o toque errado, o abraço desmedido, mas eu me questionei. Me ergui ao banco dos réus e me condenei: culpada!
Equilibrei afeto e convenções tentando fazer todos felizes, certa de que havia algo bom no mundo, mas, eu estava errada. Você é o porco-rei escondido sob o manto do bom homem de família, o da farda limpa.
Engraçado, tendo você, também, me criado, deveria saber que sou tão ruim quanto você. Sou casca grossa, destemida, ousada.
Não há preço a se pagar para o que você me fez, mas, ainda assim, como indulgência, te permitirei pagar com a morte do seu ego.
Aprendi que, pra gritar devemos fazer silêncio, então, soprei estrategicamente duas ou três notas musicais ao mundo e espero o retorno de uma sinfônica, que virá, eu sei. Você não sabe de música, mas será atingido pelo poder da arte, do amor, da justiça, e ruirá.
E, se não, tudo bem, minha bazuca de verdades está assentada ao pórtico da porta da varanda te esperando adentrar. Não há colete à prova de balas que te proteja de mim. Pode vir, só não se achegue, mantenha boa distância. Eu não sou mais o alvo, você, e todos os seus, é quem são.
*O conteúdo dessa crônica não é real, é puramente literário. Ou não.