Me sinto liberta. Nunca havia me sentido assim, internamente livre. Como se acabasse de despontar do ventre da minha mãe para o mundo. Dessa vez, me vi nascendo sem lágrimas, sem estranhamento, sem susto. Só nascendo, de uma forma leve e tranquila, como quem abre os olhos no domingo de manhã e tem o dia todo de folga. Me sinto livre e pronta. Recém-nascida, como quem vive o primeiro segundo do resto da existência.
Não que eu não carregue na alma e no corpo um sem-fim de histórias minhas e das minhas gerações passadas, só que as memórias não doem mais. O passado, o sinto como cicatriz e não ferida. Estou na fronte de uma guerra bem vencida, me permito estar desarmada para a próxima fase da vida, com ou sem guerras.
Um dia li que a dor é inevitável, mas que o sofrimento era opcional. Faz tempo isso; naquela época, eu estava tão tomada por dores que li e achei uma sentença muito injusta, visto que tudo que havia dentro de mim eram sofreres. E eu bem sofri, fiz isso por anos, com maestria; mas, sofrer exaure corpo e espírito, e eu já tenho demandas de gente o suficiente para que me permita ainda mais exaustão.
Não boto meu eu do passado no banco dos réus, não lhe cuspo a cara, sou grata. A ele devo esse entardecer sereno que tenho vivido aos quase quarenta anos. Não fosse aquela criatura a que se acumularam agruras, não haveria a exaustão que me trouxe ao fatídico dia que me autorizei a viver mais.
Sobre esse dia, eis que, houve um dia comum, desses de virada, entende? Acordei cansada de sofrer pelo que se foi, rememorar e revisitar dores, só levantei e caminhei decidida a ser mais feliz. Me permiti a reinvenção de quem sou e me preparei para reaprender a caminhar sobre a terra e, sobretudo, a dar mais vazão à minha voz. Não a voz que sai pela boca, produzida pela laringe das vibrações das pregas vocais. Eu queria entregar outra voz, aquela que entrega o nosso infinito particular, e vai saindo pelos poros da pele e conta ao mundo nossos segredos mais recônditos.
Sabe, não fomos instruídos a reconhecer nossa própria essência, compreender nossas virtudes e limitações. No entanto, isso é compreensível, pois o processo de autodescoberta não está restrito a uma fase específica da vida; ele se desdobra ao longo do tempo, independente da nossa idade. Raramente nos ensinam a nos encarar no espelho e afirmar: “Você é uma pessoa notável, capaz de transformar microuniversos por onde passa; você é precioso!”
É preciso que nos permitamos o renascimento. Eu, por exemplo, hoje, sou um bebê, ainda dando seus primeiros passos, meio cambaleante. Ainda aprendendo suas primeiras palavras, um tanto simplórias e óbvias. Agradeço ao dia que nasceu e eu pude renascer. Porque nesse dia olhei para meu passado, nos fundos de seus imensos e famintos olhos, que passaram uma vida a me devorar e disse: tá pago, não te devo mais nada. Pode passar, passado!