Raiva, medo, ansiedade... eu senti tudo naquele dia. E senti mais, foi horrível. Eu tinha acabado de compreender que era um problema social eu ter uma vagina; tinha de pronto, pelo desconforto, entendido que eu era o alvo de miras sujas; tinha recém visto e vivido coisas que até hoje me assombram em pesadelos. Eu só tinha nove anos.
Naquele dia, não lembro o dia, o mês ou o ano, mas tenho certeza que era uma terça-feira. Maldita terça, eu nem pude ir à feira. A feira é uma das melhores lembranças que minha sub-vida da época me entregara, mas aquela terça, onde eu tinha nove anos ia arruinar quase toda minha existência. Eu lembro bem, dói, só não sei chorar.
Sofri abuso sexual de um vizinho dias antes, era uma pessoa próxima e de confiança. Ele conquistou, foi vil, aproveitador, asqueroso, eu não tive defesas. Nove anos! Me senti numa profundidade de imundície desconhecida, não haveria água para limpar. Ensaboei tanto, me machuquei.
Passei noites em claro. Nove anos. Numa idade dessas, pensando no natural da idade, vivendo em plena década de 1990 nada de assombro deveria vir que não uma cena de um filme de terror de categoria D transmitido por uma emissora B. Era comum, não era meu caso. Infelizmente, meu assombro vinha da vida real.
Tem incômodos que nos tomam, hoje os entendo. Aos nove anos, se algo incomoda à existência tão pueril, a polícia geralmente deve ser acionada. Não foi.
Fui abusada, já disse. Senti o desconforto da sujeira do universo adulto, procurei ajuda num colo de confiança, fui profundamente traída. Segui sendo abusada, dessa vez pelas convenções sociais absurdas que enfiam tudo sob o tapete e permitem que outras meninas sejam presas de predadores que espreitam só uma mínima oportunidade. Era terça-feira.
Lembro, me rasga toda até hoje, eu, nove anos, desacreditada pelo meu sangue. Fui posta à prova, que prova? Que história sexual nojenta eu poderia inventar?
Eu, na frente do meu abusador confessando mentira dizendo que ele não fez o que fez. Tirando-o por inocente. Nove anos, salvando o convívio dos adultos mentirosos. Tentando salvar meu espírito juvenil através de pequenos dedos cruzados atrás das costas. Meus olhos entregavam que fui vítima de um monstro. Eu morri ali.
Eu morri e permaneci morta por anos até que com a escrita e com o compartilhamento de vida com mulheres de todos os tipos, renasci para mim, para o futuro.
Demorei anos a expor meu primeiro abuso, outros vieram: ser mulher é calvário cotidiano. Fui desacreditada, descredibilizada aos nove anos.
Nessa semana o estuprador de Mari Ferrer foi inocentado mesmo com todas as provas contra ele. Lembrei de mim, lembrei de todas as mulheres. Eu quis tanto dar um abraço nela, dizer: ei, Mari, essa sociedade não acredita em mulheres-meninas quando o assunto é nossa sexualidade. Não se iluda, desde sempre, nós, mulheres, somos você, sem voz, cheia de provas, desaprovadas, condenadas. Pegue sua dor e frustração, forje escudo e espada, se proteja e lute.