Há um monstro sob a minha pele, incrustado entre meus ossos, habitando cada víscera do meu corpo. Há um monstro bem alimentado, nutrido com o mais fino fruto das minhas frustrações e dos meus silêncios. É bem incômodo dividir uma moradia com alguém que exige tanto espaço. Como não há possibilidade de vivermos harmoniosamente dentro de mim, vez ou outra ele sai para passear. Estes passeios têm ficado cada vez mais rotineiros.
Monstro que é, não obedece constituição ou regras sociais. Ele é puro instinto, emoção e autoproteção. Quando sente que está em ameaça, sai armado para a guerra. Na batalha, não há guerreiro como ele, nunca vi. Tem força, estratégia e numa discussão ele já entra vencedor.
Ele até tenta ser paciente, eu sinto, mas o fogo arde em sua monstruosidade nata. Assisto daqui de dentro, sentada no banquinho da existência, seu esforço em se entregar ao instinto e destroçar o mundo com os dentes. Em vista aos outros monstros que estão por aí, ele até que é dos bons, se é que é possível afirmar algo assim, e, como um bom monstro é reativo, somente.
Ele não costuma caçar a briga, aguarda por ela sossegado. Mas, se ela vem, está sempre pronto. Por vezes tento segurá-lo, tenho êxito por segundos, logo meus braços se tornam insuficientes e não podem contê-lo. Eu o liberto e ele sai à rua executando suas mínimas vinganças. Passo a vida a tentar convencê-lo de abster, fica na sua, mas ele grunhe em meus ouvidos: é justo, eles merecem. Finjo que é verdade, nós dois sabemos que não.
Tentei domá-lo tantas vezes que desisti, tirar sua monstruosidade é impossível, tal qual tirar de mim essa criatura demasiadamente humana que sou. Então, desde que ele chegou, passamos os dias assim: ele rosna, eu choro; ele gargalha, eu sorrio; ele bate, eu me desculpo, ele se vinga, eu aceito calada.
Dias atrás, numa conversa franca, questionei o porquê dele ter escolhido meu corpo para habitar. Ele respondeu com um riso de canto de boca, sarcástico, que não escolheu nada e nunca havia chegado, pois sempre esteve ali e, que, chegava a se impressionar por eu não ter ciência disso.
Quem você acha que cuidou de você nesses 34 anos, Sandra? Me perguntou. Quem te fez reagir às injustiças que foram desferidas contra você e contra os seus? E os surtos de raiva? Seguiu provocando.
Puxou-me com certa violência para frente do espelho e me fez ver que nossos reflexos se fundiam. Não acreditei. Era minha cara, mas os olhos eram dele. Eu, com olhos de monstro. Eu, carregando aquele olhar impetuoso, destemido. Gostei do que vi, me achei até mais bonita.
Eu, atônita, fui me dando conta das inúmeras vezes que minha humanidade exagerada dava adeus à minha personalidade pacata e eu me desconhecia totalmente. Lembrei de como eu me sentia vitoriosa após conseguir me defender das investidas ferozes do mundo.
Concebi, enfim, que ele é meu monstro, ele sou eu tentando sobreviver. Eu sou um monstro!