Início marcando que isso não é um texto sobre religião, ou ciência, ou serve para qualquer coisa que não seja uma reflexão sobre o que somos, como nos formamos seres e sobre como nos relacionamos a partir de como fomos feitos. É isso, tão somente.
Quando o Deus cristão fez o mundo, de acordo com os registros firmados na Bíblia, ele criou o céu, a terra; a luz e a treva; o homem e a mulher... Fomos forjados na dualidade desde sempre, dois lados que, geralmente, se opõem. Dois diferentes de um, contra todos. Eis a fórmula falida da sociedade em que vivemos.
Como negar que, se acreditarmos piamente na Bíblia, nossas possibilidades de ser gente são tão rasas? Ninguém é sim ou não. Estamos muito mais para ‘talvez’ ou ‘não, sei mas estou tentando descobrir’. Dói viver esse mistério profundo, buscando a si, na tentativa de compreensão do outro, vivendo à sombra de regras que não são nossas.
Nessa regra: o homem e a mulher, duas criaturas aos moldes do artista. Um só poder ver e amar o outro. Nada além deles existe. Um complementa o outro. Precisam um do outro. Triste, né? Eu acho, sério mesmo.
Bom, não venho desafiar Deus. Por vivência, sou até cristã. Mas, não vejo sentido ao pensar que Ele, ao olhar para sua ilimitada possibilidade artística, criasse só isso. Um cara, uma mina. Heterossexuais e só. Um gosta de futebol, a outra de cozinhar. Não pode ser!
Pelo amor de tudo que você acredita. Seja lá quem ou o quê nos criou, ou nos fez criadores, nos fez infinitamente mais. Muito mais que isso. Inclusive, creio, que nos fez melhores do que somos. Melhoremos, então.
Um homem é só um homem. Uma mulher é só uma mulher. Sim e, profundamente, não. Assim como não podem ser essas duas criaturas o meio e o fim, pois entre o que começa e o que se finda há o caminho. O caminho é tudo o que temos, somos. É no caminho entre esses que são os layouts pré aprovados, o homem e a mulher, é que está a grandíssima delícia de ser. Há todo um universo a se descobrir que vai muito além do que há entre nossas pernas e o que se esconde dentro de nossos corações. Há um infinito de vida no horizonte, distante do binarismo do macho e da fêmea.
E se na Bíblia estivesse escrito: E, Deus criou o homem e a mulher e, intimamente, neles, o poder ser quem quisessem. Num sopro de vida concedeu-lhes liberdade para se compreenderem como se enxergassem, sendo assim felizes. Ali, entre criaturas, nasceu a travesti, toda a transexualidade e as mais incontáveis formas de ser gente plenamente amando gente. Fez do vazio surgir possibilidades de criaturas complexas e completas dentro de si, do outro, plenas em suas naturezas. Tudo estava perfeito.
Subiu na mais alta montanha, edificada por Ele mesmo, e contemplou gente de todo tipo, de toda cor, com tantos corpos, nuances e distintos detalhes. Ficou feliz e orgulhoso de si.
Se essa fosse a literatura bíblica, poderíamos, talvez, hoje, nos amar verdadeiramente? Eu não sei, eu não posso saber, mas eu sonho, eu escrevo.