Essa é uma história velha, nem tão velha assim, pois é jovem o suficiente para ainda ser atual. Aconteceu comigo. Conto aqui: Estava eu na sacada de casa, um privilegiado apartamento no centro da cidade. Era um apartamento alugado. Sim, meu privilégio é de aluguel. Tenho consciência, não tenho pedigree, não posso vacilar, fico à espreita, meu privilégio pode se findar no próximo quinto dia útil.
Contextualizando, dali enxergava gente padecendo como nunca antes. Percorri muitas cidades nesses 34 anos, tive a possibilidade de morar em grandes capitais e juro que nunca havia presenciado tantas pessoas revirando lixo.
Eu não estou falando do romantizado trabalho dos coletores de recicláveis. Romantizado, sim. Não é bonito, nem saudável, muito menos prazeroso percorrer a cidade inteira - em duras condições - mexendo nos rejeitos dos outros. Eu estou falando de seres humanos buscando comida no lixo. Eu tô falando de seres humanos passando fome. Homens, mulheres, crianças, velhos sem ter nada para comer. FOME! Entende?
Enfim, depois de perder todas as energias tentando fazer a bebê dormir, fui tentar me recuperar, tomar um ar na sacada. Sentei. Vinha alguém. Fui acompanhando, quase que displicentemente, um homem vindo em direção ao contêiner. Homem negro, franzino, cambaleava ao caminhar. Botei reparo, me preocupei com seu estado de saúde. Então, ele deixou sua mochila e sacolas no chão e abriu o contêiner do lixo orgânico. Pensei na hora: não, moço, esse é o depósito de rejeitos, o de recicláveis é o outro. Acreditei que ele se daria conta do erro. Acontece que não foi um erro. Ele sabia, constatei depois. Pendeu o corpo pra frente e entrou no contêiner, ficou revirando por um instante. Me pareceu uma eternidade. Saiu com algumas coisas na mão, mexeu, cheirou, limpou e comeu de um jeito esganado. Jeito de quem tem fome.
A essa altura meu peito retumbava, estava angustiada com aquela cena da realidade de todo minuto no Brasil. Doeu. Doeu muito. Eu acabara de botar minha filha pra dormir, aquecida, alimentada e bem vestida. Doeu.
Ia chorar, não chorei, não me achei no direito de chorar, aquele homem negro franzino tinha infinitamente mais direito às lágrimas que eu. Mas doeu, e tanto. Ia chorar, engasguei, segurei, me veio uma abrupta e descontrolada tosse, tossi como quem vomita.
Ele me viu. Eu o senti meio envergonhado, mas com toda sua coragem e gentileza me cumprimentou. Retribuí. Pensei em levar algo pra ele comer, lembrei de que era madrugada, sou mulher e o mundo é um lugar hostil. Blasfemei internamente, não me movi. Ele, creio, se sentiu mais confortável comigo, deu boa noite, seguiu caminhando. Antes de sair do meu plano de vista, me disse: não tá fácil viver, moça. E, de novo, me veio a dor, dessa vez aguda, desconcertante. Compreendi profundamente o que ele disse, revisitei meu árido passado, ousei responder, titubeante: eu sei, sinto muito, boa noite.