Sonhei que levantava da cama e tinham construído uma farmácia na minha cozinha. Acordei apavorado, já que depois da cama a geladeira é o meu lugar da casa favorito. Mas o pesadelo não permaneceu tão distante, até porque passei o dia pensando nele. Quem sabe o inconsciente não tenha pintado a cena nos meus sonhos porque os resquícios diurnos de enxergar uma farmácia em cada esquina são totalmente reais.
Emocionalmente falando, estamos todos mancos. A bengala em questão não é uma novidade, porém ela consegue se reinventar a cada dia para que a gente pense que seja: tem medicamento por todo lugar e para todos os lugares. Não preciso nem dizer que não estou comemorando o avanço da ciência ou o acesso aos tratamentos, até porque o meu foco é outro. O meu medo é o que estão fazendo com a gente – ou melhor, o que é que estamos fazendo com nós mesmos.
Em 2020, a indústria farmacêutica faturou quase 140 bilhões de reais, em um crescimento de 15,6%. Os números assustam porque são cada vez maiores, assim como o número de farmácias espalhadas pela cidade – em uma só quadra, você chega a encontrar duas. Estamos, mais do que nunca, carentes de um suporte que vem em formato de pílula. A prova disso é que os destaques do último ano foram os suplementos, vitaminas, relaxantes e, longe de ser uma surpresa, os antidepressivos.
A overdose ganhou força com a pandemia de covid-19, momento em que muitos descobriram que a saúde mental estava esquecida ou que nunca chegou a ser prioridade. E quando falta prevenção, a única maneira é remediar. No último ano, cresceu em 50% o número de atendimentos no SUS por conta do uso excessivo de sedativos. Não receio em dizer que já podemos nos considerar mortos-vivos: sono excelente e alimentação balanceada virou luxo e sinônimo de tempo livre (ou seria uma desculpa daqueles que não se priorizam?).
Não é novidade alguma que a gente morre um pouco a cada dia desde o momento em que se nasce. Mas é cada vez mais nítida a tentativa de nos fazer engolir goela abaixo a necessidade de viver uma vida amparada por medicamentos. Criamos um estilo de vida onde dependemos de remédio para dormir, remédio para ser produtivo, e também remédio para não esquecer de ir até a farmácia comprar mais remédio. Quando ele é comprovado e recomendado cientificamente, então, chega a ser motivo para comemorar. Do contrário, só faz ema correr.
De fato, a vida é uma droga. Ao menos, estamos medicados.