Mesmo não sendo um espectador do reality show mais popular do país, nas últimas semanas você deve ter escutado o termo “cancelamento” ziguezagueando por aí. A expressão tem sido exaustivamente utilizada no Big Brother Brasil, programa que por muito tempo ficou fora dos holofotes e no último ano encontrou meios de justificar o porquê de estar em sua 21ª edição: o espelho da realidade nunca foi tão explícito, condenatório e, acima de tudo, assustador.
Eu era muito novo quando o BBB começou a passar na televisão, mas a recordação da febre que o reality causou é bastante fresca. Entretanto, ano após ano, como tudo aquilo que é novidade, o programa foi tão reduzido quanto a alcunha de seus participantes: ser um ex-BBB chegou a soar como algo pejorativo. Em 2020 (mais conhecido como o ano mais louco de todos), o jogo virou – literalmente. Adequado aos dias atuais onde a internet é juizado de primeira instância, o confinamento ultrapassou os muros da casa mais vigiada do Brasil graças a uma pandemia surreal, e assim reafirmamos nosso desespero em apontar o dedo para a tevê, esquecendo que até mesmo desligada ela nos reflete.
Até aí, nenhuma novidade. As próprias novelas sempre nos fizeram aplaudir ou torcer o nariz para certos personagens. Contudo, condenando os maiores jogadores de um reality show cujo intuito é jogar (!), o poder de eliminar os peões do tabuleiro real foi ampliado graças à cultura do cancelamento que borbulhou na internet. Eleito como termo do ano em 2019 pelo Dicionário Macquarie, a ação de cancelar alguém por seus erros, jeitos, falas, posicionamentos, etc, serviu como malhete para que qualquer cidadão comum (que, veja só, também erra) pudesse decidir quem é do bem e quem é do mal, quem presta e quem não presta, quem continua brincando e quem sai do parquinho.
O cenário todo só contribuiu para reforçar a ideia de que o mundo nunca foi tão polarizado – para não dizer extremista. Hoje, pouco espaço existe para o aprendizado – em uma vitrine como o BBB, então, ou você entra na casa como um raro exemplo de sensatez ou passa o programa todo pisando em ovos. Acontece que as feridas que os participantes tocam são exatamente aquelas que o próprio espectador tenta curar em si. Talvez a posição de juízes nos seja tão confortável porque é muito mais fácil recriminar aquilo que nós mesmos somos e gostaríamos tanto de não ser. Atribuir culpas ou considerar lento o aprendizado de um estranho é muito mais simples do que reconhecer que, sim, seríamos massacrados se fôssemos assistidos 24 horas por dia. Que longa seria a fila do cancelamento se todas as casas tivessem câmeras...
Em um tempo onde a internet não era sinônimo de tribunal, Fernando Pessoa disse que a perfeição é desumana, uma vez que o humano é imperfeito. A busca pelo ideal tornou-se algo tão intrínseco ao sujeito moderno que qualquer deslize soa como absurdo. Maximizado pela presença de famosos, o Big Brother alimentou ainda mais a voracidade de cancelar alguém que durante muito tempo nós fizemos questão de colocar em um pedestal. No fim, isso tudo funciona quase como um suspiro de alívio ou até mesmo um respaldo: se fulano que é fulano erra, por que eu não poderia?
Na dúvida, opta-se pelo cancelamento (desde que ele não chegue até nós, é claro). Fecha-se o espaço para o aprendizado e de imediato enjaulamos alguém sem nem explicar o porquê ou oferecer caminhos que o levem a pensar diferente. A desconstrução de tantos anos de preconceitos e ações discriminatórias é necessária, sim. Mas tudo leva tempo – e cada um de nós tem um tempo diferente. Como incluir coerência, respeito e sabedoria em uma sociedade excludente? Muito mais fácil espiar o outro e esquecer que, no fim das contas, somos todos brothers – mesmo que não ajamos assim.