Sexta-feira da Paixão, Sábado de Aleluia, Domingo de Páscoa. Essa sequência de dias com nomes especiais ressalta, no mundo católico, o dogma da ressurreição, ou a celebração ritual da passagem da morte para a vida, a partir do sacrifício de Jesus. Foi a promessa de vida eterna após a morte física o fator de propagação da nova religião que surgia, a ponto de esta se espalhar por todo o mundo pagão antigo e terminar por converter o poderoso Império Romano. Pela doutrina cristã, a salvação seria oferecida a qualquer pessoa de qualquer povo, desde que houvesse fé. Daí a pregação ampla do evangelho por toda parte.
Mais tarde, com o cristianismo de braço dado com o poder político, a falta de fé já não era uma mera recusa de tal salvação, mas uma afronta a Deus. Combater os ditos infiéis era mais que um dever moral, era uma guerra santa, estranhamente a serviço do mesmo Cristo que em seus discursos divulgou tolerância e amor. Durante séculos, rios de sangue encharcaram a terra em nome de Deus — vide as Cruzadas — e muita violência foi praticada contra os divergentes ou mesmo suspeitos de pensarem de modo diferente da crença oficial — vide a Inquisição.
Quando os navegantes portugueses avistaram primeiramente o Brasil, ainda no clima da Páscoa, a bandeira da Ordem de Cristo tremulava no alto das embarcações, fundindo os poderes político e religioso. A glória do reino material seria também uma expansão da fé cristã. Na suposta ilha batizada de Terra de Vera Cruz, foi celebrada uma primeira missa no domingo seguinte ao da Páscoa. Em carta enviada ao rei, dando conta do achamento da nova terra e das prováveis riquezas ali existentes, o escrivão Pero Vaz de Caminha já sugeria uma providência a respeito dos nativos: “Vossa Alteza, que tanto deseja acrescentar à santa fé católica, deve cuidar da salvação deles”.
Chegam a ser engraçadas, na Carta de Caminha, as cenas em que os portugueses tentam ensinar aos indígenas rituais da fé cristã. Numa missa, se comprazem de ver os nativos ajoelharem-se e levantarem as mãos, imitando-os perfeitamente na sequência de gestos da liturgia. De outra feita, cobrem com um pano a nudez de uma única moça que assistia à pregação, mas quem disse que a curiosa inocente, ao sentar-se, se lembrava de estender o pano sobre as suas chamadas “vergonhas”, das quais não tinha vergonha nenhuma?
Era um broto de país que nascia num festivo clima pascoal, de renovação da fé e de afirmação do mito português de protagonista do mundo moderno. Mas, naquele inevitável choque de culturas, um mundo estaria a morrer sem chances de ressurreição — aquele mesmo mundo com ares de paraíso por sua natureza exuberante e por sua gente a exalar mansidão e cooperação. Mais de quinhentos anos depois, o país gigante que se formou no tempo cristalizou violações, especializou-se em extermínios e jamais conheceu a cidadania, ainda que tenha se alinhado aos ideais libertários que sustentam as nações mais progressistas do planeta.
Em mais uma temporada de Páscoa, penso nesse país-promessa do qual sou cria. Tenho medo da sempre temível mistura de religião com política, agora em versões tão agressivas quanto hipócritas. Preocupo-me com a rapina mal disfarçada dos salvadores de plantão, que orquestram o povo numa macabra dança de ódio. Preocupo-me com esse mesmo povo, que, embora hábil em ressurreições, não percebe o perigo disfarçado de falsa moral.
Ó Senhor, derrama sobre esse país tropical a bendita sensatez que o afaste dos novos e velhos abismos.