À beira de uma poeirenta estrada amazônica, num cabaré decadente, um seringueiro bebe sozinho numa mesa. O pensamento voa ao sabor da canção na voz de Paulo Sérgio, que ecoa em alto volume. “Há dias na vida / Que a gente pensa que não vai conseguir / Que é bem melhor deixar de tudo e fugir / Que outro mundo tudo vai resolver”. É uma canção de extremo desalento, tristíssima também na melodia. “Não creio em mais nada / Já me perdi na estrada / Já não procuro carinho / Me acostumei na caminhada sozinho / A vida toda só pisei em espinho / Já descobri que meu destino é sofrer”.
Longe dali, a voz do mesmo cantor embala a viagem de um motorista de caminhão no centro do país. Asfalto, saudade e solidão por cem quilômetros. Asfalto, saudade e solidão por mais duzentos quilômetros. E vem o rádio na boleia a traduzir o que ele somente sente como um vazio no peito: “Pelo amor de Deus / Por favor, me leve embora, estou morrendo / Eu não quero mais ficar / Eu vou correndo / Eu preciso ver depressa o meu amor”. Começa a chover. Assim como o para-brisa do caminhão, as vistas do condutor também se turvam.
E ao ouvir o nome da música anunciada pelo rádio em cima da geladeira, a empregada doméstica corre a aumentar o volume do aparelho. Já na introdução dançante, ela sacode o corpo sob o avental, de volta à pia. E Paulo Sérgio canta: “Eu te amo, eu te venero / És para mim tudo, tudo que eu quero”. E prossegue: “Não adianta insistir / Não vou deixar você partir / As nossas brigas sem razão / Não são motivos pra separação”. A senhora cinquentona pensa: que pena, meu Deus, esse homem morrer tão cedo..., tanta música bonita ainda por fazer...
Se não tivesse sido vítima de um derrame aos 36 anos, em 1980, o cantor e compositor capixaba Paulo Sérgio completaria 80 anos neste 10 de março. Um típico pisciano. Sintonizado com temas de Peixes como música, romantismo, sensibilidade absoluta e compaixão pelos sofredores, Paulo Sérgio brilhou no cancioneiro popular como definidor do estilo de balada romântica que fez a fama própria e de tantos outros astros na década de 1970. E embora tenha vendido mais de 10 milhões de discos e sido adorado pelo povo, foi sempre desprezado pela historiografia musical. Seu pecado? Ser sentimental demais, “cafona”, antes de o termo “brega” se espalhar.
Foi pelas mãos de outro pisciano, o historiador e jornalista Paulo César de Araújo, no já clássico livro Eu Não Sou Cachorro, Não (2002), que Paulo Sérgio teve o merecido reconhecimento na história da cultura de massa no Brasil e como dono de uma obra que mapeou a vida afetiva do brasileiro. Por sinal, o livro de Araújo já começa contando o fenômeno que é a visita de milhares de fãs todos os anos ao túmulo do cantor, no Dia de Finados. Como ignorar o que toca fundo os humildes mas ardentes corações de nossa gente? Aceitemos ou não, os cantores do povo nos põem de frente com o Brasil real.
Eu, que herdei dos meus um suburbano coração, cresci ouvindo Paulo Sérgio, no interior baiano, antes que alguém me dissesse — tarde demais — que ele era brega. E hoje ele reina em minha memória afetiva. Meu ascendente em Peixes é dado a dramáticos enredos amorosos, reais ou imaginados, como nas cenas inventadas no começo. E Peixes em mim também acha justo iluminar o que é negado pela cultura elitista. Então, se em junho quero louvar o culto e prestigiado Chico Buarque também pelos seus 80 anos, as honras hoje devem ir para o ex-alfaiate que se tornou cantor/consolador das dores de amor do meu povo.