Escrevo de Caxias do Sul, cidade serrana localizada a uma altitude de 817 metros. Em relação a quê? Ao nível do mar, claro, o marco zero das altitudes. Acho curioso esse referencial da elevação do sólido chão onde piso ser a fluida água. Logo ela, que naturalmente nos arrasta para suas profundezas. Já alerta o ditado sobre tais perigos de submersão: o mar não tem cabelos. E o mesmo nível do mar também vale para as medidas de profundidade. Ora, para cima ou para baixo a partir da flor d’água é imagem simbólica que evoca o signo de Peixes, na qual dois peixinhos nadam em sentidos contrários, mas ligados por um fio.
Enquanto escrevo, Sol, Mercúrio, Saturno e Netuno transitam por Peixes. Nenhum outro signo está tão enaltecido agora quanto o que encerra o zodíaco, neste começo de março cujas águas fecham o verão. Há certa literalidade na manifestação sazonal desse ciclo cósmico. É hora de os pés lambidos pela espuma das ondas subirem a Serra. Chega de mergulhos oceânicos e da envolvente maresia que convida a entregas no veraneio. Cá no alto, da cidade basáltica encarapitada entre peraus, há um ano de fato para começar, há a vida real para tocar. Ei, peixinho que nada para cima, vamos ao dever.
Trilhar, construir, realizar. Subir a montanha e ficar mais perto de Deus, como cantou Roberto Carlos, um homem de fé. A montanha é símbolo de elevação e conquistas. E há uns peixinhos com vocação ascendente que precisam de altos topos, até o mais distante possível do nível do mar. Cardumes dessa espécie lotam as trilhas do Monte Everest, no Nepal. E lá vou eu navegar no Google para saber a altura do mais elevado pico do planeta. São 8.849 metros, mais de dez vezes a altitude de Caxias do Sul. Ah, a sensação de fincar uma bandeira no topo do mundo!
Corta para o peixinho que ficou na praia. Esse, mais melancólico, quer nadar para baixo, rumo às águas abissais. De novo ao Google: a maior profundidade dos oceanos é a Fossa das Marianas, no Pacífico, a leste das Filipinas. Em relação ao dito nível do mar, são 10.984 metros abaixo. Cabe um Everest invertido e ainda sobra muita água. Pela pressão absurda e pela escuridão extrema, pouca gente ousou descer até lá. Um foi o cineasta James Cameron, diretor de Titanic. Agora veja essa: em 2019, foram encontradas lá uma sacola plástica e embalagens de doces. Caramba, nem as profundezas mais insondáveis escapam da predatória ação humana!
E muito menos as alturas colossais do Everest. Recentemente, o governo do Nepal baixou ordem de cada alpinista ser obrigado a trazer as próprias fezes, em sacos especiais, na volta da escalada. Isso porque o Everest, com alto fluxo de alpinistas, está se tornando uma latrina ambulante em certos trechos, já que, pelas baixas temperaturas, os dejetos dos aventureiros não se decompõem. Em dias de verão, a montanha fede, sem falar no risco de doenças.
Bem, preciso terminar a crônica e não sei como. Não esperava esse rumo que o texto tomou, de revelar que o expurgo do homem marca presença do mais alto píncaro ao mais colossal abismo. Volto a astrologar. Por fechar o zodíaco, Peixes sintetiza a natureza humana: complexa, paradoxal, difusa entre luzes e sombras. Em tempos de polarizações ideológicas, certezas absolutas e confrontos entre “bem” e “mal”, convém medir bem a altura em que nos colocamos. Pois há sempre um fio invisível que nos liga ao mais escuro e desconhecido em nós. E a prudência sugere estarmos atentos ao nível do mar, na firmeza de até onde ainda dá pé.