Seu Dante, que cara sisuda o senhor tem! Parece até que ainda está no inferno. Vá lá, abra um sorriso, homem! Nem que seja para alegrar o paraíso de sua vida, esta bela Beatrice, aqui no banco sentada. Nem assim? Hum, tanto tempo preso no bronze desse monumento dá nisso: sorriso travado. E ainda tem esse porte medieval, carrancudo. Quando vim ao mundo, nas páginas de um jornal, há cem anos, o senhor já estava aqui na praça fazia dez. Imponente no busto, como cabia ao poeta máximo da Itália e patrono deste sítio central da cidade formada por colonos italianos. Praça Dante Alighieri! Não era para estar mais feliz com essa honraria, meu patrício?
Sei, não foi o senhor que se esculpiu assim... Entendo. Imitaram a face antiga esperada de um homem de sua importância. Ora veja, como se o valor de alguém se medisse somente por sua pose de sábio e cenho fechado. Pensando assim, seu Dante, eu, que sou o oposto do senhor, um reles migrante destrambelhado do juízo, um sonhador alucinado, era para não ter valor nenhum nessa comunidade. E olha eu aqui, todo vivo e cheio de homenagens pelo meu primeiro século! Tenho até estátua também! Já não desconfio, tenho certeza: esse povo precisa tanto do senhor quanto de mim.
Aliás, o cronista cuja mente agora domino (e tive que ameaçá-lo a tamancadas para que me desse voz mais uma vez), esse cronista me lembra que o senhor se diz geminiano no texto de A Divina Comédia, e que Caxias do Sul também é do signo de Gêmeos. Então, tudo a ver a gente falar na dualidade entre seriedade e graça, entre trabalho e delírio, entre suor e prazer. Para que labutar duro a semana inteira, se a gente não puder se esbaldar na comilança de domingo e sair do salão paroquial com a língua enrolada pelo efeito de garrafões de moscato? É essa mistura de disciplina e êxtase que faz da vida un bel mazzolino di fior.
Falando em língua, seu Dante, esse tema geminiano nos espelha também. O senhor foi responsável, e lá se vão mais de 700 anos, pela fixação da língua italiana que hoje é oficial na Itália. Em vez de escrever no culto latim, o senhor fez sua poesia no dialeto do povão de sua Florença. Era uma língua inculta, como também era rude o dialeto talian que os colonos de vários sotaques diferentes inventaram por aqui, nesta Mérica do Brasil. Foi quando meu criador, o frei Aquiles Bernardi, decidiu me escrever não na língua que tinha vindo do senhor, o italiano gramatical, mas na língua do povo que se formava aqui. E este maluco que vos fala, Nanetto Pipetta, foi precursor na forma escrita do dialeto que hoje é reconhecido como mais uma língua brasileira. Te mete comigo, seu Dante!
Por causa disso, juntos, passamos por poucas e boas, lembra? Mal saiu o livro com minhas aventuras em talian, com enorme sucesso em 1937, já veio o presidente Getúlio Vargas inibindo o que não fosse nacionalmente brasileiro. Logo explodiu a Grande Guerra e proibiram tudo o que lembrasse a então inimiga Itália. Proibiram o talian, proibiram a mim e ao senhor.
Esta praça mesma virou Praça Rui Barbosa! Por pouco não arrancaram o senhor deste pedestal. E pasme, o desmiolado sou eu!
Ei, ei, o senhor está abrindo os dentes! Está rindo, seu Dante! Ah, está passando o corso da Festa da Uva! Espertinho, aproveita que todo mundo está de olho na Sinimbu e se vira para espiar também o desfile! É bonito de ver: trabalho e alegria na rua, pão e poesia, celebração de conquistas e muita arte! Como se diz hoje na língua do povo: é nóis, seu Dante!