Pronto! Fui invocar Nanetto Pipetta, para celebrar o centenário do personagem, e não imaginei que o danado fosse tomar conta da minha cabeça. Espaçoso que só ele, assim como ultrapassou o limite da ficção e até mesmo o da morte, Nanetto se recusou a inspirar uma única crônica. Achei que me despediria dele ao reler o livro com suas aventuras, traduzido em português do original em dialeto talian escrito pelo frei Aquiles Bernardi. Qual o quê! O sempre faminto rapaz quis mais, mais, guloso por atenção.
E o que fazer com o apelo de um amigo que, mesmo amalucado, a gente gosta tanto? Aliás, creio que a gente gosta dele por isso mesmo, por ser amalucado. Ele simboliza um princípio criativo universal que desafia as convenções e quebra a ordem estabelecida para gerar o novo, o imprevisto, e fazer a vida se renovar. Nanetto é uma representação cultural regional de um padrão cósmico, por isso tipos semelhantes estão presentes nas mitologias e literaturas do mundo inteiro.
Reparei, no livro, como o frei Aquiles associou os marcos temporais da vida errática de Nanetto a elementos cósmicos ou naturais: do nascimento sob uma Lua minguante à morte nas águas do Rio das Antas. A história já começa com essa referência astrológica, repetida várias vezes no enredo, como se o minguante fosse responsável pelos infortúnios do rapaz. O autor certamente mirou no conhecimento tradicional dos agricultores, seu público alvo, acerca das relações entre o ciclo lunar e as etapas da lavoura.
E mais, Nanetto teria nascido no dia 21 de julho, na vigência do signo de Câncer, regido exatamente pela Lua. Câncer e Lua se associam a nossas raízes e pertencimentos, à nutrição e aos vínculos familiares e até ao sentido de pátria. Aqui a Lua minguante, mais reflexiva e crítica, vai ilustrar o desajuste de Nanetto com seu lugar de origem. Eis uma bela imagem da fome e da sensação de abandono que oprimiam os agricultores italianos, em suas vidas minguadas, por ocasião da imigração.
Só mesmo achando outra casa, outra pátria, sob outra Lua. O pai de Nanetto ameaçava mandá-lo para a América, onde a Lua “nunca míngua”. É quando entram em cena as fantasias da América como a terra da cocanha. “Deve ser um jardim de delícias, que Deus fez”, pensava Nanetto. “País da lua sempre cheia... país, enfim, rico de todos os bens!”. E em busca dessa utopia e dessa mais benfazeja relação cosmológica, Nanetto deixa a família sem avisar e viaja clandestinamente para o Brasil.
Agora veja: o folhetim sobre Nanetto Pipetta estreou no dia 23 de janeiro de 1924, em Aquário, signo das utopias e sonhos de futuro. E a Lua estava cheia! Cocanha não havia, mas Nanetto insiste no sonho de vencer. Bem ao modo irreverente de Aquário, busca a própria identidade pelas margens, entre choques e assimilações culturais. O adolescente malcriado vira adulto e até conquista com seu trabalho um pedaço de terra, quando é tragado pelas águas do rio. Triste fim? Ou uma imagem de purificação?
Mais que um alívio cômico em meio à dureza da vida rural nos primeiros tempos da colonização, e mais que um mau exemplo de conduta na narrativa moralizante de um autor religioso, Nanetto Pipetta foi um anti-herói humanizador. Suas aventuras mapearam a trajetória imigrante, mas sem o peso épico de vencer sempre. Nanetto trouxe o direito de quebrar a cara e recomeçar, de ser infantil e chorar de medo, de delirar no sonho ou explodir de raiva, sem perder jamais a ternura. Como não acolher esse louco santo em nosso humano coração?