Sentada ao meu lado, a pequena Aurora, de sete anos, era a mais jovem espectadora, pelo que pude conferir, na plateia da peça teatral Miseri Coloni Dá Voz ao Silêncio. Antes de começar a sessão, vi chegar um noninho curvado sobre a bengala, os passos miúdos e cuidadosos, mas no rosto uma expressão de prazer antecipado. Detrás da minha poltrona, uma família inteira ocupava uma mesma fileira, reunindo diferentes gerações. Gente se cumprimentava, com acenos efusivos, dos vários cantos da sala. Não, não era apenas uma comum ida ao teatro numa noite de janeiro em Caxias do Sul: era um acontecimento festivo, riquíssimo em simbologias. Era a manifestação de uma cultura única a celebrar com arte e alegria seus códigos também únicos.
Aquela apresentação teve um tom histórico — e me senti sortudo por testemunhar. Embora o enredo dessa nova montagem do grupo caxiense Miseri Coloni gire em torno de várias tensões entre a cultura derivada da imigração italiana e os desvarios do poder político, com ênfase na repressão à língua original que os colonos aqui desenvolveram, um dos símbolos da afirmação da cultura local se impôs no palco, na data: a figura de Nanetto Pipetta. É que a volta a cartaz da peça coincidiu com o exato centenário da publicação da primeira narrativa sobre o célebre personagem. Sim, Nanetto Pipetta fez 100 anos, vivíssimo, ainda arrancando gargalhadas.
Seu criador, o frei capuchinho Aquiles Bernardi, mais conhecido como frei Paulino de Caxias, foi visionário ao publicar um folhetim sobre as aventuras de um jovem trapalhão veneziano em terras gaúchas, não no italiano gramatical adotado pelo jornal Stafetta Riograndense, mas no dialeto local, o talian. A comunicação foi absoluta. Ler em voz alta, para toda família, na língua falada em casa, os capítulos semanais da saga do destrambelhado Nanetto virou um aguardado ritual. Mesmo que o folhetim tenha durado pouco, de 23 de janeiro de 1924 a 18 de fevereiro de 1925, Nanetto seguiu ativo e forte, de boca em boca e nos corações de gerações adiante. O danado ganhou vida própria!
É um feito merecedor de estátua — e Nanetto já tem a sua, no Parque da Festa da Uva — uma criação literária se eternizar por tocar do âmbito paroquial ao universal. E aqui entra a genialidade do frei Paulino, ao aproximar seu Nanetto do perfil de um personagem que os estudos de mitologias comparadas chamam de “trickster”. Presente em todas as culturas do mundo, o “trickster” é o trapaceiro, o bobo ou bufão, a alternar entre a astúcia e a insensatez, entre a sorte grande e o azar, malandramente engraçado, sempre sedutor.
Por essa linhagem, Nanetto é parente próximo de Chicó e João Grilo, os dois malandros adoráveis que Ariano Suassuna fisgou do imaginário nordestino e que estão prestes a retornar ao cinema na continuação de O Auto da Compadecida. Hum, não estaria na hora de Nanetto Pipetta ganhar também um filme? Pois o teatro ele já dominou, graças ao mesmo grupo Miseri Coloni, que durante muitos anos encenou suas desventuras com estrondoso sucesso, até na Itália. E vejam outra arte do Nanetto: o saudoso Pedro Parenti, ator do grupo que o encarnou nos palcos, hoje dá nome ao teatro em que o Miseri apresentou essa nova peça!
Ao fim do espetáculo, enquanto a menina Aurora tirava fotos com os pais ao lado de Nanetto, vi passar o noninho da bengala, feliz, feliz, como se tivesse reencontrado um íntimo e divertido amigo de infância. E quem dirá que não reencontrou? Viva Nanetto Pipetta! Viva o Miseri Coloni!