O Sábado de Aleluia sempre aciona minha memória da infância no interior baiano, quando era o dia da Queima de Judas. Para além da simbologia religiosa do rito, era uma farra para a molecada ver aquele boneco montado na praça se despedaçar ao estouro das bombas e das fagulhas dos rojões, depois de muito rodopiar, em chamas, no círculo de sua base. Em poucos minutos, o que restava do Judas era chutado de um lado para outro, como algo sórdido que precisasse ser expurgado de vez. Era a queima metafórica do traidor de Jesus, mas também o merecido fim de tudo o que fosse perverso e maligno. Era uma purificação sob o fogo vivificador de Áries.
Essa tradição, que sobrevive nas periferias e em cidades interioranas, remonta ao cristianismo medieval e reverbera antigos ritos pagãos de celebração da primavera no hemisfério norte. Chegou a nós nos tempos coloniais, pelos católicos ibéricos, e aqui ganhou as tintas da cultura popular e do folclore. No Brasil, a odiosa figura do Judas foi ganhando cores locais, fundindo-se com os males mais paroquianos e com personalidades públicas que encarnem as traições do bem comum. Políticos, é claro, costumam ser preferencialmente retratados como o Judas da vez. Quisera o povo brasileiro manifestasse em afirmação de cidadania a mesma potência criativa que brota de seu rico caudal de emoções...
É como criatividade — como arte, portanto — que gosto de pensar o significado dessa festa popular. Aqui evoco o princípio da catarse pensado por Aristóteles sobre a tragédia grega. A violência contra a figura do Judas e seus correlatos é ritualizada num espetáculo público como uma projeção. Ou seja, uma descarga purgativa de emoções. Que se queime, que se exploda, que morra nessa encenação o que trai a paz e a felicidade da comunidade. Que essa violência cênica substitua as tantas violências reais de todo dia. E que o mundo amanheça melhor, purgado do sombrio mal humano, no radiante Domingo de Páscoa da celebração da ressurreição de Cristo. Até que no ano vindouro esse ritual seja revivido.
Faz décadas que não presencio uma Queima de Judas. Já não carrego o encanto infantil pela pirotecnia do rito, mas entendo bem a necessidade deste como fator simbólico de equilíbrio social. Precisamos periodicamente exorcizar o mal. Mas o Judas que hoje eu gostaria de ver queimar já não teria a cara de algum vilão de novela, como o Leôncio de Escrava Isaura. O mundo mudou, mudei eu, tudo se ampliou e ficou mais complexo. Na verdade, nesses tempos cínicos de desencanto e vilania generalizada, o problema é o excesso de faces possíveis para o Judas da vez.
Trair o pacto social e o bem da população virou quase regra em governos sem vergonha da corrupção e da truculência, assumidamente adeptos da necropolítica. Guiar-se não pela ética e pela moral mas pela avareza de muito mais que 30 moedas de prata virou padrão em altos cargos públicos. Mentir, trapacear e manipular, seja nas tribunas, púlpitos ou redes virtuais, já não provoca rubor. Nesse tempo de valores invertidos, o povo é que é malhado todos os dias pelos Judas de plantão.
Ah, queria ter de novo a ingênua fé do menino que fui, para crer na magia de um rito de purificação que nos livre do mal, amém. Cansado de tanta pulsão de morte, tanto cinismo e tantos crimes sem castigo, tenho medo de já termos nos acostumado com os Judas — são tantos, afinal — a ponto de idolatrá-los ou tomá-los como espelhos.
Morremos como humanos decentes, Brasil! E tomara possamos ressuscitar no domingo.