Uma das coisas mais intrigantes de um mapa astrológico é que ele segue funcionando mesmo após a morte da pessoa. Basta conferir: sempre que uma personalidade histórica ou de certa proeminência social é evocada, seja por qual razão for, haverá algo indicando isso em seu mapa celeste de nascimento, mesmo que a pessoa há muito tenha virado pó. Nosso céu reverbera no tempo, conectando o presente ao passado. Um exemplo é o escritor e dramaturgo russo Anton Tchekhov, morto em 1904 e ora em evidência por conta do filme Drive My Car.
Recente ganhador do Oscar de Filme Estrangeiro, o japonês Drive My Car é grande arte a espelhar nosso tempo. Adaptado de contos do escritor japonês Haruki Murakami, o filme oferece muitas camadas de leituras ao acompanhar a jornada de um ator teatral famoso que, após perder a esposa, vai para a cidade de Hiroshima dirigir uma montagem da peça Tio Vânia, de Tchekhov. Entre outros fios narrativos, o diálogo com o texto da peça ilumina não apenas a trama do filme, mas também temas atuais, como a perda de sentido e o absurdo da vida, bem como a necessidade de prosseguir apesar das desilusões.
No céu de agora, a novidade é a conjunção entre Júpiter e Netuno no signo de Peixes, que fica exata dia 12. Curiosamente, Netuno é o regente do cinema, enquanto Júpiter tem a ver com o que é estrangeiro. Faz sentido, sim, um filme estrangeiro expressar parte da simbologia desse encontro cíclico dos planetas. Entre tantos perigos de mistificações e delírios, já comentados aqui em textos anteriores, essa conjunção também indica esperança. E a esperança brota da compaixão pelos outros, apesar dos enganos, e do resgate de algum sonho de futuro mesmo que inatingível.
O filme amplia o nosso compromisso com o futuro, envolvendo o desafio de encarar as próprias dores e os dissabores nas relações. É genial o detalhe de a montagem da peça dentro do filme reunir atores de diferentes idiomas — inclusive a língua de sinais. Se há um mundo em demolição, e outro mundo a ser criado (e a história se passa em Hiroshima, cidade renascida da destruição da bomba atômica), isso exige a construção de uma linguagem pautada na aceitação do outro. A fé na transcendência espiritual dá o tom final à peça de Tchekhov. E a fé na vida, até como antídoto contra as pulsões de morte ora no poder, volta a ser essencial.
No mapa natal de Tchekhov, aquariano nascido em 1860, Netuno estava praticamente no mesmo local em que está agora, no final do signo de Peixes, fechando uma volta completa do planeta em torno do Sol. Já Saturno, senhor da realidade, estava em Leão, exatamente oposto à posição de agora, em Aquário. Seja pelo retorno da transcendência netuniana ou pela crise da realidade saturnina, o fato é que o céu de agora ativa o céu do escritor. E Tchekhov revive luminoso em sua arte, muito acima dos pobres de espírito que querem “cancelar” tudo o que seja russo.
A peça Tio Vânia foi encenada em Caxias do Sul em 2011, pelos mineiros do Grupo Galpão, quando Netuno entrava em Peixes. O subtítulo dessa montagem era: “aos que vierem depois de nós”. Agora, sob o encontro de Netuno com Júpiter, enquanto drenamos um lodaçal de ódio e desumanidade, nos cabe definir o que fazer, e o que não fazer, para ajudar a criar no futuro um mundo onde reinem a paz, o amor, o respeito, a fraternidade. Como seremos lembrados bem lá adiante, quando nosso mapa for ativado por algum planeta? Ah, que grandeza ter sido apenas um anônimo que de algum modo tornou melhor a vida dos outros!