O Vale Trentino, em Forqueta, é um dos meu recantos preferidos em Caxias do Sul. Os parreirais na paisagem de bruscas encostas, as vinícolas com nomes de famílias, as capelas dedicadas aos santos de antiga devoção, agricultores de faces rosadas e sotaque peculiar: é tudo muito comum a outros espaços rurais serranos, mas cada elemento cultural ali parece ganhar mais pureza e autenticidade. Aliás, quem conhece Forqueta sabe: é uma joia de lugar.
Em época de uvas, como agora, o Vale Trentino fica ainda mais sedutor, seja pelo visual dos cachos maduros ou pelo aroma que toma conta das estradas sinuosas. É um lugar que precisa ser descoberto – ou mais valorizado – pelos caxienses. Fazendo jus ao primor gastronômico regional, algumas vinícolas já investiram em restaurantes, para agradar mais um dos nossos cinco sentidos, o paladar. As trilhas locais costumam ser bem aproveitadas por ciclistas e por caminhantes, como eu. Do alto das estacas dos parreirais, atentas corujas, com seus olhos enormes, espiam quem chega e quem sai.
Se aqui louvo um vale de produção de uvas e vinhos é porque estamos sob o céu de Peixes, atualmente enfatizado pela presença de seus regentes, Netuno e Júpiter. Dos tantos símbolos associados ao signo da dissolução e da transcendência, o vinho ganha destaque. Na tradição mitológica, o vinho foi um presente aos humanos de Dionísio, ou Baco, o deus da embriaguez e do delírio criativo.
Dionísio era um estranho estrangeiro no divino panteão grego, com sua corte de sacerdotisas vestidas com peles de animais selvagens e tomadas pelo frenesi da possessão. Era o sombrio deus do desregramento, em oposição à ordem representada pelo solar Apolo. Com a dádiva do vinho, Dionísio permitia aos mortais acesso a um êxtase louco e mágico. Seus cultos resultaram nas famosas bacanais romanas, nem sempre permitidas oficialmente.
Segundo Jean Defradas, Dionísio/Baco simboliza “toda espécie de embriaguez, a que se apodera dos beberrões, a que arrebata as multidões arrastadas pela música e pela dança, até mesmo a da loucura, que ele inspira àqueles que não o honraram como convém”. Sim, esse deus selvagem costumava punir cruelmente quem o renegava. Fascinante e perigoso, necessário à ordem assim como dela inimigo, Dionísio foi reduzido em sua complexidade com o tempo.
O cristianismo absorveu e refinou muito do que no mundo antigo era atributo desse deus pagão. É à luz desse caudal de esforços repressivos civilizatórios que hoje encontramos, por exemplo, a loucura de Dionísio no caos consentido do Carnaval, precedendo a purificação da carne na Quaresma. Seu culto foi enquadrado nas normas sociais. Artes como o canto coral e o teatro seriam legados de Dionísio. E ecos dionisíacos hoje reverberam tanto numa comportada degustação de vinhos quanto no sacolejo de uma balada.
Em tempos piscianos, também podemos encontrar reminiscências do culto de Baco nas celebrações em torno da colheita das uvas, como a festa realizada em Caxias do Sul até este domingo. O antigo desfile ritualístico das bacantes agora aparece vertido em arte e símbolos no Corso Alegórico, com elementos de dança, canto coral e teatro, é claro.
Voltando a Forqueta, em 2006 foi inaugurada na praça central do distrito uma estátua de Baco, mas com o sexo devidamente coberto por uma folha de parreira – afinal, a igreja de Santo Antônio fica na mesma praça! Num parreiral do Vale Trentino, uma placa avisa: “Com o passar dos vinhos, os anos ficam melhores”. Assino embaixo. Evoé Baco!