Não chega a ser uma história, apenas uma imagem. Mas como ela surgiu sem conexão aparente em meio às ansiedades da minha insônia, decidi na hora que escreveria sobre ela. Na verdade, já até escrevi, faz anos, e aqui cabe um relato dos bastidores. Entre 2010 e 2011, eu e o artista plástico Antonio Giacomin viajamos pelas cinco regiões do país em busca de percepções para o livro Jeitos de Ser Brasil, lançado em 2012. A proposta era registrar fragmentos da diversidade cultural brasileira em tom impressionista: ele nas aquarelas, eu em pequenos textos. Fugimos de cartões postais e roteiros convencionais. Queríamos sentir o tal Brasil profundo. Foi assim que chegamos à pequena Xapuri, no Acre.
Havia uma certa apreensão nossa em relação a Xapuri, por conta do imaginário da violência extrema que vitimara o líder sindical Chico Mendes em 1988. Contudo, logo fomos envolvidos pela simpatia da população já habituada a lidar com forasteiros fascinados pela saga do mártir da floresta. O dono da pousada modesta em que ficamos era amigo próximo do ambientalista, de quem nos mostrou uma fotografia antiga, apontando: “Emprestei pra ele esse terno, quando ele foi receber um prêmio internacional”.
Ouvimos histórias incríveis sobre esse estado que faz fronteira com a Bolívia e o Peru. Aliás, até 1903, o atual Acre era território boliviano. Aprendemos sobre o épico ciclo da borracha e sobre a devastação da floresta por fazendeiros interessados em pastagens e contrários aos povos que viviam dos seringais e das castanheiras. Pela defesa da floresta e de sua gente, Chico Mendes foi covardemente assassinado. Ali estava parte do dito Brasil profundo, com suas feridas e suas promessas. E na ocasião de nossa visita, havia alguma esperança de paz, até por conta da projeção mundial do caso.
Na derradeira tarde na cidade, apesar do indescritível calor amazônico, eu quis conhecer o local onde Chico estava enterrado, como a fechar essa jornada. Nada demais no modesto túmulo ou no pequeno cemitério. A não ser a imagem que me voltou à lembrança agora, dez anos depois: em cima de algumas sepulturas baixas de cimento, meninos empinavam pipas coloridas. Contra o céu azulíssimo, as pipas dançavam lindamente ao comando das mãos juvenis. Fiquei impactado com aquela conexão de elementos tão contraditórios: a morbidez das sepulturas e a leveza plástica das pipas. E mais os meninos na condução de tudo, contentes e indiferentes ao calor infernal!
Por que soltar pipas exatamente ali, no cemitério? Eu poderia ter perguntado a qualquer um daqueles guris mestiços. Acaso naquele descampado o vento seria mais favorável? Mas fiquei quieto e saí sem nada falar. Algumas coisas, de tão extraordinárias, devem preservar um certo mistério, como convém aos milagres. Preferi guardar aquela epifania. No texto para o livro, fiz uma leitura espiritualista da cena, imaginando almas querendo atingir o céu mas ligadas por um fio ao chão dos mortos. Chão dos mortos! Aí talvez esteja a chave do ressurgir dessa imagem em minhas inquietações noturnas!
Hoje, à luz das curas de Escorpião, penso na atenção que devemos manter para que nunca mais impere essa sombra ressentida que fez tombar tantos irmãos sobre um chão de descasos. Penso nas crianças – os adultos de amanhã. Que sonhos elas podem fazer dançar agora no céu do futuro? Que país entregaremos a elas? E feito um curumim de Xapuri, insisto em embalar num fio de esperança a visão de um Brasil que zele por sua gente com amor e respeito.