Dia desses, publicou o Pioneiro: “Como é a maior barragem de Caxias do Sul vista por dentro”. Reportagem do meu colega Andrei Andrade, gremista e blueseiro, hábil com as palavras, um baita contador de histórias. Transcrevo o trecho inicial: “Maior barragem e principal obra de saneamento já feita em Caxias do Sul, o Sistema Marrecas é feito de superlativos. São 215 hectares de área alagada no distrito de Vila Seca, onde 33 bilhões de litros de água são contidos por uma barragem de 60 metros de altura e 300 metros de largura, cuja construção demandou 1,1 milhão de toneladas de concreto”.
Há quem veja e converse com gente morta, tipo o gurizinho do filme O Sexto Sentido. Eu, não. Eu vejo metáforas. Gosto de conversar com as metáforas. Gosto de rir com elas, por vezes, chorar bem baixinho agarrado às metáforas. “215 hectares de área alagada no distrito de Vila Seca”. A terra árida e ressequida, agora inundada, transbordante. “33 bilhões de litros de água contidos por uma barragem”. Água é sempre símbolo de vida. Nesse caso, vida represada (contida) — por “1,1 milhão de toneladas de concreto”.
Quantos homens e mulheres, operários e executivos, famosos ou desvalidos, desde os que vislumbram a vida do alto de arranha-céus, aos que veem a vida à altura da sarjeta, quantos psicanalistas seriam necessários pra sondar, reconhecer e tratar da sina de sermos barragens, de vivermos erguendo muros intransponíveis pra conter bilhões de sentimentos?
Como se reconhece um homem-represa? Pois mulheres não costumam represar. Homens, sim. Há sempre em nós um conteúdo latente, oculto ou adormecido. Nos falta vazar, romper comportas. Já ouvi dizer que não fazem isso porque não menstruamos. Se tivéssemos de atravessar, mensalmente, pelo ciclo da menstruação, compreenderíamos melhor o sentido — e a inevitabilidade — do transbordamento. Será?
Drummond, poeta e homem-represa, escreveu: “No meio do caminho tinha uma pedra / Tinha uma pedra no meio do caminho / Tinha uma pedra / No meio do caminho tinha uma pedra”. Represado em si mesmo, atado à pedra que represa, causa amargura, dissabor e sentenças de dor: “Nunca me esquecerei desse acontecimento / Na vida de minhas retinas tão fatigadas / Nunca me esquecerei que no meio do caminho / Tinha uma pedra”.
A poeta portuguesa Matilde Campilho, solar e transbordante, escreveu: “A poesia, a música, uma pintura, isso não salva o mundo, mas salva o minuto. E é suficiente”. Salvar o mundo, de quem? Isso é ideia mesquinha de macho sentado em seu arsenal de ogivas (Freud explica). “A gente está aqui para dançar um pouco sobre os escombros. O cirurgião vai tentar salvar todas as vidas que puder. A gente vai poder salvar os segundos — da minha vida, da vida de todos meus amigos.”
Drummond teria sorrido ao ler Matilde. Teria transbordado — mesmo à conta-gotas. Porque as metáforas desatam nós, fissuram as muralha d’alma revestidas de argamassa, numa confusa amálgama de areia, dor, cimento e lágrima. Hilda Hilst, poeta que tecia versos em brasa e sabia dosar a vida, ora abrindo comportas para exasperar, ora recolhendo-se em si, contida, derramou-se dizendo: “Tenho te amado tanto e de tal jeito / Como se a terra fosse um céu em brasa. / Abrasa assim de amor todo meu peito / Como se a vida fosse voo e asa”.
Outro homem-represa, Ferreira Gullar, apesar de taciturno, soube vazar: “A poesia transfigura as coisas, mesmo quando você está no abismo. A arte existe porque a vida não basta”.