E se soubéssemos o exato dia da nossa morte? Nem precisaria constar hora e local. Porque implicaria na quebra de um dos princípios básicos entre o nascer e morrer: o direito de ir e vir (menos pro encarcerado e quem vive sob ferrenhas ditaduras). Na certidão de nascimento, a informação do dia da morte viria grafada ao lado do dia, hora e local onde despertamos para a vida.
Escrevi dia desses A crônica anacrônica, sobre o fardo que seria a eternidade, provocando vocês a pensar: “e se não morrêssemos?”. Escrevê-la também foi um fardo pesado de carregar até a última linha. Porque, da maneira como caminha a humanidade, a probabilidade de a chapa esquentar, provocando desastres ambientais cada vez mais severos e irreversíveis, é altíssima. Ou alguém ainda acredita que vamos bater palmas ao redor de uma fogueira celebrando a paz no mundo, cantando músicas fofinhas sobre a harmonia entre os povos? Sorry, babe.
John Lennon, o cara que compôs Imagine, a canção que prega a paz na terra a mulheres e homens bem-aventurados, foi assassinado na porta de casa. Martin Luther King Jr., o cara que lutou bravamente (de forma não-violenta), que ganhou o Prêmio Nobel da Paz por combater (de forma não-violenta) o racismo nos Estados Unidos foi assassinado na sacada de um hotel.
Com o tempo, atravessando vales cada dia mais soturnos, devastados e distópicos, nos tornamos menos humanos. A morte é o fetiche da pós-modernidade. A mobilização por genocídio (de forma generalizada e indiscriminada) é maior do que a luta pela erradicação da pobreza ou, pelo menos, por saciar a fome de quem definha, desnutrido. Avançamos, criativos e engenhosos, na recriação de seres viventes, como cachorros-robô, sem pelos e recheados de microprocessadores.
Essa crônica não é filosófica, tampouco retórica. É pura provocação — é lançar trevas sobre a luz. Se eu soubesse o dia da minha morte, se tivesse essa informação tatuada na pele e na alma, talvez estivesse realizando meu sonho de forma mais efetiva (e, com o perdão da expressão, mais mortal), como um arqueiro de uma flecha só, diante de um leão feroz e faminto. Enquanto isso, porém, enquanto a morte não vem me visitar em uma partida de xadrez, como em O Sétimo Selo, belíssimo filme do Bergman, eu sigo procrastinando, comprando supérfluos, perdendo tempo com bobagens, soterrado por uma pilha de livros não-lidos.
E se John Lennon não estivesse se referindo a uma “vida em paz” de forma coletiva, chancelada pelos líderes de todos os países? E se ele tivesse cantado “vivendo a vida em paz”, em uma simples analogia às nossas vidas íntimas? A dita paz interior. Soa menos utópico? Mais real e alcançável? Mas e o que fazer com o Putin, Mugnol? Na visão de Lennon e de Luther King, apesar dos tantos Putins por aí, é preciso seguir em frente, porque a paz não é impossível. Que cada um encontre a sua.
E para fechar a fatura: “Quem venceu o medo da morte venceu todos os outros medos”, ensinou Mahatma Gandhi, que lutou bravamente (de forma não-violenta) pela independência da Índia e foi assassinado quando saía de uma reunião de oração — sem nunca ter recebido o Nobel da Paz.
Arqueiros de uma flecha só, Lennon, Luther King e Gandhi seguem derrotando seus inimigos, apesar da morte.