Ouvi esse questionamento numa entrevista. A pauta era pesada. A morte. As implicações da morte pra quem fica. O luto como processo pra compreensão da morte. E há como compreender, mesmo à luz da espiritualidade? Há redenção pra quem faz a travessia? Há consolo de fato pra quem fica? Enfim. Aí, lá pelas tantas, a psicóloga, uma das profissionais referência em luto no Brasil, me provoca com essa pergunta:
— Quem cuida de quem cuida?
Silêncio. Ingênuo, isso nunca havia me passado pela cabeça. Ela percebeu meu desconforto. Além de experiência clínica ela é uma mulher sensível. Larguei de lado o bloco de notas e a caneta. Atento, ouvi uma série de relatos de profissionais que se deparam diariamente com a iminência da morte. Os relatos eram tão expressivos que me vi realmente dentro das cenas.
Uma enfermeira da oncologia, apesar de experiente, que ficou trancada no banheiro chorando copiosamente porque não suporta mais se dedicar a cuidar e ver tantos pacientes morrendo. Uns mais jovens do que ela ou mães como ela. Um plantonista experiente (com ênfase nessa palavra), que não suporta mais atender casos de violência, que resultam em balas cravadas no peito de jovens da idade do seu filho mais jovem.
Antes mesmo que eu formulasse uma pergunta, quem sabe pra compreender melhor essa dor intermitente, a psicóloga disse:
— São profissionais experientes. Mas quem está ali pra acolher a dor deles? Porque a enfermagem é a equipe que está o tempo todo ao lado do paciente. É natural que se criem vínculos. E toda morte é a vida de uma pessoa que tinha sonhos, que amava alguém, que se importava com alguém... E muitas vezes, o paciente, como é o caso da oncologia, fica tanto tempo internado que compartilha da sua vida com a equipe de enfermagem.
Rabisco no bloco de notas: vínculos ceifados pela morte, a dor do luto, quem cuida de quem cuida. E logo a seguir, outro relato.
Desastre da Boate Kiss, em Santa Maria. Uma equipe desse instituto caxiense, especialista em luto, vai ao front. Parece uma guerra. Entre mortos e feridos, familiares, amigos, conhecidos, curiosos, todos impactados pela tragédia. Redes de apoio se formaram pra acolher as muitas dores.
— Marcelo, houve um momento em que tivemos de criar um outro grupo para acolher quem estava lá para cuidar dos outros... Para acolher e abraçar quem estava se doando para cuidar da dor de toda aquela gente.
Empatia é a palavra da moda. Virou tendência no olho do furacão da pandemia. Cuidar é mais do que expressar empatia. E cuidar de quem cuida? Tem nome pra isso? Anjos? Talvez. Como naquele filme do Wim Wenders, Tão Longe, Tão Perto:
“Somos os mensageiros que
aproximam os que estão longe.
Não somos a mensagem,
somos os mensageiros.
A mensagem
é o amor”.