No dicionário de Alessandra
A jornalista Alessandra Paula Rech, filha de Vilson Paulo Rech e Beatriz Telve Rech, possui uma trajetória e tanto. Doutora em Literatura Brasileira pela UFRGS, ela também leciona para os cursos de graduação em Comunicação e pós-graduação em Letras e Cultura na Universidade de Caxais do Sul. Alessandra conta com cinco obras publicadas, desde narrativas infantis, até contos e crônicas, intituladas A insônia dos sabiás, O sumiço do canário, Mirabilia - que recebeu o Prêmio Vivita Cartier de Literatura em 2015 -, Aguadeiro e Na entrada-das-águas, amor e liberdade em Guimarães Rosa. A mãe de Tábata, 20 anos, e de Clarice, 14, produz quinzenalmente a coluna Casa&Cia do Jornal Pioneiro e hoje compartilha um pouco de seu mundo neste dicionário particular.
A de Almanaque, do Pioneiro, publicação da qual tive a felicidade de participar com uma equipe muito apaixonada pelo Jornalismo lá em sua origem, há 20 anos.
B de Brasil, que precisamos conhecer mais e melhor para transformar a letra minúscula, da madeira que lhe deu nome, em maiúscula, designando de fato um povo diverso e seu conjunto de valores, como ensina o antropólogo RobertoDa Matta.
C de Ciência, que requer respeito e investimentos em busca de condições de vida sustentável na Terra, frente à ameaça concreta da nossa extinção.
D de Democracia, a soberania do povo, que se mostra frágil ante a escalada das desigualdades sociais e as deficiências na Educação, sequelas da lógica neoliberal.
E de exemplo: de minha mãe, Beatriz Telve Rech, o de abraçar alegremente os desafios, sem jamais duvidar das minhas capacidades; de meu pai, Vilson Paulo Rech, o gosto pela vida ao ar livre, pelos frutos da terra e pela colheita nas alturas, seja de pinhões ou de sonhos.
F de Freis Capuchinhos do bairro Rio Branco, que aprendi a admirar ainda mais na figura do Frei Celso Bordignon, à frente do Muscap, com seu maravilhoso trabalho de preservação da memória e defesa da arte.
G de Guiomar Olga Telve (in memoriam), a Guio, tia-avó e madrinha, costureira do antigo Sehbe, que viveu a mocidade no cenário da II Guerra, na Itália, e, de volta ao Brasil, me ensinou o cuidado com os recursos naturais e a beleza das narrativas orais que, com entusiasmo, compartilhava conosco.
H de Hilda Hilst, a poeta das intensidades e da finitude: “Peço uns barcos bordados/ No último vestido/ E vagas/ Finas, desenhadas/ Manso friso/ Como as crianças desenham/ Em azul as águas.”
I de Inventário amoroso, uma grande alegria de 2020. Trata-se do primeiro trabalho do Coletivo FAM, produção teatral em desenvolvimento com os amigos Fábio Schmidt (ator) e Maysa Stedile (diretora), a partir de textos literários de minha autoria.
J de Juma Xipaya, cacica aos 24 anos, estudante de Medicina na Universidade Federal do Pará e ativista da floresta amazônica, cuja preservação depende do respeito ao sistema de manejo dos povos originários.
K de Kátia Flávia, a “Encarnação do mundo cão/casada com um figurão contravenção”, que remete ao drama das milícias cariocas. O ano era 1987 e Fausto Fawcett já anunciava em suas canções o superindividualismo da então emergente sociedade da imagem.
L de lives e sua ponte simbólica entre as pessoas, tão significativa no tormentoso ano que passou. Entre elas, as de Caetano Veloso, poesia e ato político a um só tempo.
M de maternidade, que alarga meus horizontes do Ser. A condição é extensiva às criaturas de quatro patas que adotei ao longo dos anos e foram se tornando, de alguma forma, minhas guardiãs.
N de navegação, que sugere partir em busca de outras aventuras. Também evoca um clássico: A linha de sombra, de Conrad, cujo drama é a calmaria em alto mar, sob os tormentos de uma peste; algo como a quarentena recentemente vivida.
O de Órbita Literária, iniciativa que denota amor à literatura em Caxias do Sul e já ultrapassou a marca de 330 encontros, demonstrando seu vigor como grupo aberto de resistência cultural.
P de polemização, um arriscado chamariz midiático que coloca em xeque avanços intelectuais de toda a ordem em debates chulos, que multiplicam a desinformação em troca de audiência.
Q de Queijo artesanal serrano, que consquistou a primeira Denominação de Origem para o gênero no país em 2020. Define a importância da agroindústria familiar, a economia mais sustentável das pequenas propriedades rurais.
R de Ramil e as milongas de Délibáb, feitas a partir das poesias de Jorge Luis Borges e João da Cunha Vargas, no manancial de imagens de solidão e bravura que constitui os sujeitos da fronteira, sintetizado em sentenças como: “El destino no hace acuerdos”.
S de sorriso, agora atrás de máscaras, ainda assim, a mais bela forma de comunicação.
T de tireoide, cujo termo deriva de “escudo”, na raiz grega. Um câncer nessa região em 2020, agora tratado, desafiou-me a um intenso trabalho de ressignificação das minhas “defesas” em sentido amplo.
U de uvas e seus doces aromas nos verões da infância nas casas dos avós Íris e Victório Rech e dos bisavós João e Rosa (in memoriam), terras onde aprendi a ter sempre por perto os temperos e os chás.
V de vaga-lumes, que emprestaram sua luz ao meu aniversário de seis anos no jardim dos Telve, no Centro da cidade, e ainda brilham intensamente nas janelas da saudade.
W de Waly Salomão, o poeta e compositor, para com ele poder dizer “Oh, sim, eu estou tão cansado”.
X de xadrez, pano de fundo de O gambito da rainha, série memorável de 2020, com uma fotografia primorosa e roteiro delicadíssimo, que nos apresenta à potência do feminino e das amizades, desconstruindo clichês românticos.
Y de yin-yang, da sabedoria tradicional chinesa, o masculino e feminino que habita todo o indivíduo; noção de equilíbrio das forças na natureza.
Z de Zelig, o filme, pretexto para homenagear toda a obra de Woody Allen em sua mescla de entretenimento, arte e reflexão, dialogando com a genial herança freudiana.