Se os tempos são sombrios, há mais razões ainda para se falar de amor. Mergulhados numa espécie de senso comum nos direcionando a absorver uma realidade contaminada pela dor e a morte, esquecemos da persistência marcante dos bons sentimentos. Empenhemos todas as forças para nutrir o que nos devolve a possibilidade de seguir em frente criando, rindo, semeando contentamento. Estamos provisoriamente paralisados diante desse drama. A melancolia se alonga, alimentando o trágico. Passamos a ver apenas o que nos rouba as claras manhãs de alegria. Agregado a isso, pode-se dizer: épocas narcísicas quanto a nossa estão longe de criar o cenário ideal para a proliferação de afetos envoltos em generosidade. O Eu passou a ter primazia absoluta, ator principal de um monólogo flertando claramente com a patologia. No entanto, há sempre alguma fresta por onde nos esgueirar em busca de ar e luz. Cada um deve criar dentro de si um código de sobrevivência. Testemunhar a guerra não significa render-se a ela.
Tento permanecer em vigília poética e afetiva. Ao encontrar amigos, reforço o que neles me atrai e aprecio. Procuro suspender o senso crítico ou atenuá-lo ao máximo. Se me valer de lupas a toda hora, a palavra cumplicidade desaparece dos meus relacionamentos. Relaxo e me deixo encantar com as qualidades e as transformo em admiração. Se por enquanto é necessário evitar os abraços, nada nos impede de estreitar simbolicamente em nosso peito os seres amados. Lembre da força do olhar, pois ele gera calor humano em igual proporção.
E ando absorto em busca de poesia. Pequenas porções diárias são remédio infalível contra a vontade de desistência ou a instauração do desânimo. Posso começar o dia com o lirismo de Quintana (“Se as coisas são inatingíveis... Ora/ Não é motivo para não querê-las.../Que tristes os caminhos se não fora/ A presença distante das estrelas”); clarear as horas com a doçura de Cecília Meireles (“No mistério do sem fim equilibra-se um planeta./ E, no planeta, um jardim, e no jardim, um canteiro; no canteiro uma violeta, e, sobre ela, o dia inteiro,/ entre o planeta e o sem-fim, a asa de uma borboleta”). Avança a tarde e recebo a visita encantada de Adélia Prado (“Meu Deus, me dê cinco anos. Me dá a mão, me cura de ser grande!”). E quando a noite desce com seu manto, é sobre o amor que quero ouvir, na voz de Manuel Bandeira (“As almas são incomunicáveis. /Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo./ Porque os corpos se entendem, mas as almas não.”).
Se a vida é breve, tão breve, evitemos o contato com pessoas de coração endurecido, dando abrigo ao que as incomoda – faca de lâmina enferrujada machucando a pele. Convocaremos todos para inaugurar a aurora a qualquer momento, sem prévio aviso.