A morte de Paulo Gustavo é a mais emblemática da pandemia. É mais uma entre as mais de 420 mil perdas até agora, cada uma com suas dores e ausências, cada uma com igual valor. A peculiaridade, no caso de Paulo Gustavo, é que se trata de alguém com enorme visibilidade e reconhecimento como comediante e ator. Alguém com a cara do Brasil, pela irreverência e inclinação para fazer rir a partir da realidade, do cotidiano. Foi uma perda visível da pandemia, enquanto na avalanche das demais, cotidianamente, são perdas banalizadas, sentidas especialmente pelos mais próximos e mais queridos, cada uma com sua dor e relevância, mas empacotadas dentro do número diário de perdas. Número veemente, que fez chegar até 420 mil mortes, mas que não comove.
As perdas não comovem, no Brasil e aqui na Serra. Em Farroupilha, a opção foi por se apagar a materialização simbólica das perdas. As cruzes no Santuário de Caravaggio foram hostilizadas. A ideia subjacente, que está na base, é a desvalorização da vida, traduzida em atos cotidianos e administrativos, em escolhas políticas, em ações estratégicas. A vida está sendo desvalorizada neste momento histórico. A evidência está materializada na vida que segue seu ritmo normal. Alguns ficarão pelo caminho antes do tempo para que a vida siga em frente, esse é o raciocínio. Esta normalidade seria até salutar, não fosse o decisivo fato de que a circulação de pessoas, inerente ao ritmo normal, produz o avanço do contágio, e esse avanço produz perdas antecipadas, que poderiam ser evitadas.
Aposta-se que a vacinação vá fazer o contágio retroceder, mas e enquanto isso? E as vidas que ficaram e ainda vão ficar pelo caminho, resultado dessa escolha estratégica? Estamos falando de vidas. O distanciamento histórico ainda jogará luzes sobre esses anos de pandemia.
A morte de Paulo Gustavo sacode um pouco, amplifica os estragos da pandemia, mas nem ela fará com que as milhares de perdas tenham o poder de comover. Vida que segue. Só que a vida não poderia seguir em ritmo normal. Havia outras estratégias, e nem é preciso chegar ao lockdown, apenas em graduações e momentos. A bandeira preta no Estado produziu um recuo em indicadores da covid. Isso faz parte da lógica elementar. Mais restrição, menos circulação, menos contágio, menos perdas. Mas decidimos afrontar a lógica.
As quase 420 mil mortes não nos comovem. Se comovessem, adotaríamos outro caminho para proteger nossos queridos. Escolhemos não valorizar a vida. Não queiramos nos enganar. Vamos assumir nossas escolhas.