Quando a gente deixa a cidade da gente, deixa lá as personagens da cidade. Distancia-se delas, a ponto de se apagarem de nossas vidas com o vertiginoso passar dos anos. Só quem sai de sua cidade um dia – eu saí aos 17 anos – e deixa muita gente para trás sabe como é, na prática. Um exército de pessoas resta esquecido, e a luz delas só pulsa na memória, esporádica e breve, quando, lá um dia, nos chega alguma notícia avulsa da nossa aldeia.
Tive um amigo que me disse certa feita que a vida não podia se limitar aos “limites mesquinhos” do que a gente julga saber e conhecer. Referia-se à necessidade de abrir espaço para novas pessoas, que chegam com novos horizontes e descobertas. Certamente quem passa pela nossa vida não é mesquinho, nem nós o somos ao cuidarmos das relações com quem cruzamos um dia. Nem há conflito entre quem passou pela nossa vida e quem vem pela frente.
Então, quando saímos, deixamos por lá esse exército de personagens. São médicos, comerciantes, professores, vigilantes, bancários, esportistas, taxistas, advogados, funcionários públicos, artesãos, enfermeiros, prestadores de serviço, familiares distantes, lideranças comunitárias, personagens folclóricos da cidade, vizinhos, colegas de colégio, e por aí afora... Uma longa lista fica pelo caminho, pessoas extraviadas com o tempo e que restam soterradas, injusta e irresponsavelmente, entre as tantas quinquilharias que habitam nossa memória.
A internet se acrescentou depois, com o tempo, e hoje dispomos de portais da cidade e redes sociais que nos informam sobre as notícias da aldeia. E por meio delas, ficamos sabendo: morreu a professora de Português do Osvaldo Aranha, morreu o publicitário que esquadrinhava a cidade no carro de som, morreu o proprietário do bar na Praça Getúlio Vargas, a praça central de Alegrete, morreu o taxista e árbitro de futebol amador, morreu o pecuarista criador de cavalos, morreu o jornalista memorável que acompanhou a história da cidade, morreu o médico que apoiou a Santa Casa, que atualmente morava aqui perto, em Veranópolis, esposo de minha professora de Inglês e de Desenho – naquele tempo se aprendia desenho geométrico na escola. Morreu ainda a protetora de animais, com tão somente 31 anos.
São algumas das 70 pessoas que morreram até ontem, só em março. A covid-19 é devastadora. É uma catástrofe sanitária, econômica, afetiva... Leva as pessoas que esquecemos na cidade da gente um dia, mas que seguiram suas vidas, de quem nos distanciamos pelas circunstâncias da sobrevivência. Pois essas pessoas agora tornam a iluminar nossas lembranças, ainda que sob forma de perdas, como estrelas. Tantas perdas sentidas, antes da hora. A cidade da gente também está mais triste.