A cultura regional é uma riqueza. Traduz a relação com o ambiente, com a terra, com os elementos da natureza, com a lida. Aí no meio, entre as diversas formas de expressão, está o linguajar. Semana passada, perdemos Telmo de Lima Freitas, compositor gaúcho que retrata esse universo e esbanjava o emprego de um palavreado típico regional, que, afinal de contas, nos diferencia e traduz. E tudo que reforça a identidade é bom.
O clássico de Telmo de Lima Freitas, O Esquilador, sua música mais conhecida e ganhadora da Califórnia de 1979, é um achado. Nos aproxima de um palavreado único e que nos diz respeito, ainda que tenha nos chegado a partir de outras fontes próximas, como assim é com a circulação da cultura. Telmo nos apresenta “inhapa”, termo que significa o que vem a mais, o que vem além do acertado, um bônus. Algo que é dado “de lambuja”, outra maravilhosa expressão regional que nos distingue. “E de lambuja permita que eu nunca saia daqui”, na cantoria de César Passarinho. “Inhapa” nos chegou dos espanhóis e ingressou por aqui no intercâmbio cultural com argentinos e uruguaios.
O Esquilador é pontilhada dessas expressões. Outra palavra que aparece na letra, cujo significado pode ser menos conhecido do que “inhapa”, é “cimbronaço”. “Ao cambiar de sorte, levou cimbronaço ouvindo o compasso tocado a motor.” Cimbronaço é golpe, no sentido de baque, como ao ser surpreendido pelo compasso a motor, em substituição ao ritmo das tesouras da esquila, da tosquia da lã. Não escapamos dos “cimbronaços” ao longo da jornada.
Já “inhapa” surge no verso “Nesta vida guapa, vivendo de inhapa...” “Vida guapa” é a vida difícil, que exige valentia e deixa o couro curtido pelo enfrentamento das dificuldades. O campeiro, “ao cambiar de sorte”, ao mudar de vida, ao tentar a sorte, passou a viver “de inhapa”, de sobras, de gorjeta... Ou “vivendo de inhapa”, como se a existência, a certa altura, já estivesse tão prolongada e penosa que parecesse um bônus. Alguma semelhança com esse tempo de pandemia, em que, pela falta de estratégias e providências de combate ao inimigo, largados à própria sorte dentro de um cenário de expansão do contágio, a vida parecesse um bônus, do que não pudéssemos reclamar. Não pode ser assim. Não podemos viver “de inhapa”. Por respeito e dignidade, ninguém merece.
Na música, para não viver mais “de inhapa”, a alternativa proposta pelo compositor é “voltar aos pagos para remoçar”. Beber da água clara da fonte. Uma infalível e certeira sugestão. E que os governantes, na pandemia, não nos façam ter a sensação de que estamos “vivendo de inhapa”. Vacina sim, com agilidade e para todos.
Obrigado, Telmo, pelas belas lições de cultura regional.