A fé sem obras é morta. Esse enunciado, aparentemente singelo e verdadeiro, é bastante conhecido no universo de algumas religiões. Ele tem fundamentação bíblica, mas há décadas já produzia grenalização – ou a tal polarização no ambiente das igrejas, vejam só. Os debates sempre foram ferrenhos.
O ponto sensível do enunciado reside na palavra “obras”. Significa ação social, ajudar, fazer na prática alguma coisa pelos outros, ser parceiro para melhorar as condições de vida das comunidades. Falou em comunidades, está enveredando demais. Significa exercitar uma fé preocupada em transformar a realidade para melhor, associar a mensagem religiosa para mudar o mundo, torná-lo mais justo, o que determinada vertente teológica considera implantar sinais do Reino de Deus aqui entre nós. Religião na prática. Sim, há vertentes teológicas, que se aproximam ou se distanciam de visões de mundo, de ideologias. Ficou mais compreensível, aposto, entender por que “a fé sem obras é morta” dá problema. Já dava há 50 anos, ou mais. Já existia Gre-Nal naquela época. O outro lado dessa polarização rebatia dizendo que mais importante era o louvor, o fervor, os atos de contrição. Até onde era possível, um lado tolerava o outro na base do amor cristão.
E assim seguiram-se os anos, até desembocar na grenalização de agora, mais ampla, que assola o país, com bem menos amor cristão. Pouco vale cantar louvores ao Senhor se não existe uma prática de amor ao próximo, mandamento máximo da mensagem cristã, é o que propõe o enunciado. Em tradução mais direta, apresentava a necessidade de harmonização entre discurso e prática. Falar é fácil. A prática é outra coisa.
Dois exemplos do momento. Um certo discurso, sempre que pode, contrapõe política e técnica, e fica com a técnica, demonizando a política. Pois bem: a Sociedade Rio-grandense de Infectologia, área técnica por excelência, está colocando a necessidade de muito mais rigor no distanciamento social aqui no Estado, quem sabe até um lockdown, para conter a propagação do coronavírus. Mas justo agora? Francamente, agora não serve. Hora de guardar o discurso no bolso.
Segundo discurso: os profissionais da saúde são nossos heróis, estão na linha de frente do combate à pandemia, merecem todas as nossas homenagens. E a prática, qual é? Vida normal, boa parte das atividades liberada, filas em bancos e lotéricas, feiras para todo lado, cheias de gente. Sobrou só para o comércio. Quando se faz algum movimento para diminuir ou flexibilizar ainda mais o distanciamento social, a propagação do vírus é favorecida, a ocupação das UTIs aumenta e estoura lá nos valorosos profissionais da saúde, mais expostos à covid-19, aqueles homenageados no discurso.
Pois é. Discurso e prática. A fé e as obras.
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