Todos os dia me pergunto assim como todos os dias guardam um amanhecer. Um silêncio. Um dizer. E é no encontro com o paciente, este suposto Outro, em meio ao solitário consultório onde há só um e dois, que as questões de ordem clínica e teórica se cruzam. No externo, uma história se apresenta. No interno, fios se desenrolam de um novelo antigo e emaranhado. Mais que isso. É na conversa que se movimenta entre o que se passa dentro e o que se percebe fora que a arte do indizível se manifesta. É ali, neste ínterim de tempo-brecha que a palavra ganha nome. É na rasura da linguagem que se trabalha a capacidade de suportar as faltas.
É na sessão analítica que juntos, analista e analisando, realizam o mapeamento, sempre incompleto, das experiências vividas, e não vividas, das desejadas, das negadas e das submetidas. Falar da experiência, pela experiência, na experiência. Um nascer do não-dito, o dito. Somos esse relevo interno cheio de planícies e depressões. Guardamos dentro de nós uma paisagem interna formada por anos de decomposição de histórias, expectativas e idealizações. Gosto demais de geografia e biologia. Muito no início de minha carreira pensava em seguir por uma destas áreas. Guardo comigo a ternura por esses campos e desta forma, comparo. Nossa psique é como as camadas geológicas. Fatias e fatias de pré-história. Circulamos sobre nossa própria crosta, mais ou menos amena, mas sabemos que carregamos um núcleo quente e mortífero dentro de nós.
O setting analítico é o território sagrado do impossível, do entendimento dos interditos, dos impasses, da descoberta de si e dos próprios abismos.
Geralmente se ouve dizer que todos deveriam fazer terapia. Não é verdade. Submeter-se a um tratamento analítico não é para todos. Nem todos têm estrutura para sustentar o encontro consigo mesmo, suas faltas, seus medos, suas armadilhas, seus impasses. É preciso coragem para atravessar o próprio deserto, deparar-se com seus fantasmas. Travar um diálogo com eles e compreender que talvez nunca desapareçam de fato.
A psicanálise não trabalha com a cura, mas com a possibilidade de se suportar quem se é, compreender o que fez de si ao longo do tempo e o que fazemos para mudar quem somos. Demora para nos darmos conta de que vivemos numa guerra interna. Guerreamos demais conosco mesmos. Aceitar o que fizemos de nós até aqui exige que possamos abrir mão de nossa autoimagem. Não somos assim tão bonitos, espertos e legais quanto imaginamos. É preciso tempo, amorosidade, ternura e autocompaixão consigo mesmo. Nos deparar com a miséria que carregamos em nós exige perceber que também somos ruínas. Isso nos dá a dimensão da nossa humanidade.
(Re)nascer a cada morte é outra vez habitar-se, suportando o risco da repetição. Freud dizia repetir, repetir até elaborar. Não há nascimento sem ruptura, nunca. Pensar sobre si é uma roda a girar por si mesma, é a criação tal qual a árvore que se modela aos ventos. Resistência e entrega. Não há outro modo de se viver.