O verbo habitar é também um viajante. Nos últimos dias tenho desabitado as palavras. Faz uma semana que estou com uma laringite aguda que atingiu as cordas vocais, me deixando completamente afônica. Confesso que nos primeiros dias senti muita raiva. Coisa mais estranha tentar falar e não sair nenhum um som. Por recomendações médicas, parei de forçar a fala e decidi apenas escutar. Escutar os outros, o fora e o dentro.
A palavra é a membrana do mundo. Sem ela o mundo é conjugado de outra forma. Quando ficamos sem palavras, seja por esse ou aquele motivo, parte de nós parte para outro espaço. Um grito de pássaro me ataca a língua e penso que jamais gritarei assim. Parte de mim se revira para achar o som, descubro, mas não posso contar a ninguém. Estou muda. As palavras me deixaram de ser toda, seguem distante de mim. Cruzo a rua, ouço os outros falarem e as palavras lhes caem da boca como uma chuva de linguagem que não me molha. Comigo se revoltaram, não querem mais ser cumpridoras de função alguma. Meus Deus, que desespero. Tentar dizer algo e não conseguir se fazer entender. Apenas sorrir. No máximo balançar a cabeça como sinal de que, apesar de sem voz, ainda entendo o que está sendo dito.
Neste silêncio imposto, tenho escutado a palavra gritar, uma multidão delas se levantam e se espremem numa conjugação palavreante. Meu Deus, (este é um pedido de socorro) como as palavras são gritonas, algumas berram, outras se contorcem, outras ainda se asfixiam na tentativa de serem ouvidas. Palavras também precisam de ar para respirar, para não morrer. Escuto as palavras ao redor e penso se deveria pedir ajuda a um padre ou a um linguista, talvez a um psicanalista? A palavra na boca do outro vira bicho curva ossos veneno espuma estrela. A palavra nasce e morre, nasce e morre, nasce e morre. Escorre pela calçada, é largada no divã, presa no confessionário, analisada pelo teórico. Na boca dos gatos, e tenho cinco em casa, vira líquido para lamber o pêlo. Nas placas escritas, espalhadas pela cidade, estão coladas às paredes. Imobilizadas para sempre.
Escuto as palavras de um mundo ao redor. O vento diz de si assim como os passarinhos e os amigos. O modo como abrem e fecham as bocas. Contam, contam e eu escuto. Quando alguém na conversa está em silêncio, contam de coisas que jamais contariam. Mas não há generosidade nisso, há fatalidade. Se pudesse reivindicaria meu turno. Mas há alguns que conseguem silenciar também. Habitam comigo um outro lugar, vazio de som. Percebo nos olhos. Os olhos são feitos de água, não se pode falar dentro dela. É aí onde estou. Submersa esperando o mergulho de alguns. Delírio, bem sei, aqui compartilhado com seriedade. Escuto como quem aposta naquilo que não sabe e por indicação médica, me mantenho calada. Por sorte, apesar de não ter som, a palavra escrita revela a barulheira em que estou imersa. Quando o invólucro do entendimento explode, as lavas do inconsciente são encanto e pavor.