Entre as pedras da calçada observo os dentes de leão. Tenho um deslocamento. Cada vez que olho para eles, algo da infância me volta. Ou seria me (re)volta? Uma dor de estômago, uma sensação ruim de estar só, uma raiva disfarçada de boa educação. Amarela, a pequena flor, inverte a posição do sol e me aproxima do chão. O chão é esse estado de coisas que constelam entre o dia e a decomposição. Perto do solo somos mais gato, cachorro, grama. Somos mais poça de chuva, mãos sujas de barro, formigas, cogumelos. Somos o que somos sem nos importar em não ser nada. Somos o espaço e não um tempo.
Mas um dia a gente se distrai, e cresce.
Na quinta passada quando saí do consultório vi begônias crescidas entre as fissuras do muro. A vida não pede passagem. Diferente da morte, em que nunca estamos preparados para quando ela acontece, a vida, é uma begônia rebelde. Nasceu onde tinha de nascer. Enraizou-se naquele filete de chão em vertical e quando chegou a sua vez, floriu. E o muro que serve para separar, virou um pedaço de jardim, que ao invés de afastar, chama para a poesia.
Mas depois que a gente cresce, demora para (re)ver esses pequenos milagres.
Helena, menina pequena, chateou-se que o fim de semana chegava ao fim. Sentada na soleira da porta, não havia promessa de vagalumes em seus olhos. No carro, de volta à vida adulta, falávamos sobre aquele tempo em que o fim de semana era vivido entre o pio dos passarinhos, o pulo dos sapos, a descoberta de tesouros e o pouso das libélulas. E Helena nos lembrou de um tempo em que as pedras sorriam.
Crescer é esquecer-se dessa correnteza que são as horas dentro do dia. Quando se é pequeno, um caiaque rema em direção aos sonhos. Tudo é tão possível. Depois de grande, embora o rio interno continue com sua força, a insônia, a preocupação, os medos, a sensação de fracasso, nos derrubam e nos jogam de volta à margem. Parece que desaprendemos a viver do mesmo modo que desaprendemos a subir em árvores.
Miriam, menina mais pequena ainda, na brincadeira tirou uma carta que tinha o desenho de um tigre. Assustou-se e saiu em disparada com medo de ser pega por ele. Rimos. A fantasia atravessando a realidade em plena manhã de domingo, nos arrancando do acúmulo das décadas. Também ri, claro, e me vi ali, sentada, tão envelhecida quanto a minha tristeza.
Lembro de Pablo Neruda, en su libro de las preguntas: dónde está el niño que yo fui, sigue adentro de mí o se fue?
Há alguns dias adotamos uma cachorra, retirada de maus-tratos. Com sua alegria e desejo de brincadeiras e abraços, pisoteia os dentes de leão. Me arranca de volta à vida. Apesar de ser o terror das suculentas e fazer buracos entre as hortelãs, sinto que outra vez, uma alegria infantil me surpreende.