A lembrança é uma tábua solta no assoalho da casa. Tábua-data marcada no calendário. Foi naquele dia. Não se sabe bem a hora, porque já faz algum tempo. Então é melhor sentar-se. A coisa começa assim. Do nada. Às vezes se está sozinho. Noutras com outras pessoas. Não importa. A pisada é certeira. E mesmo que se saiba que ali sempre que pisar a lembrança volta, a gente esquece. E pisa outra vez. Pode fazer terapia, procurar cura na fé ou ir embora. Em todo lugar tem uma tábua solta e escondida, querendo ser pisada. E basta que você se distraia e ela se mostra, misturando o sentimento.
Depois que o pé vira no chão da memória é preciso paciência. Relembrar a coisa toda. Detalhe por detalhe. O sorriso, o medo, a saudade, a última conversa. Em romaria, a procissão das lembranças atravessam o corpo, a cabeça e a sala. Entram pela porta aberta no chão e invadem a cozinha. E tomam o chimarrão junto. E junto vão até o banheiro e depois se sentam à mesa enquanto o almoço é preparado. Não adianta ter raiva da tábua solta do assoalho. Maledeta. Desejar arrumar o chão. Chamar alguém para consertar. A lembrança não se deixa arrumar. É úmida. Não tem cola que cole nem prego que pregue. Quando chega nos molha os olhos e a alma. Encharca de tristeza o corpo. Faz redemoinho nos pensamentos. Bagunça o rosto. O melhor é sentar-se. Sentar-se ao lado da recordação. Ouvi-la, em silêncio. Mesmo que as palavras já não mais tenham som ou que ela já não seja tão clara. Tem vezes que não conseguimos nomear o que sentimos. E sentimos mesmo assim.
Não é possível precisar quando isso acontece. Mas sempre acontece. Mesmo anos depois. Um cheiro, uma fotografia, uma música e de repente a lembrança de alguém querido que se foi, volta. E volta como um aperto com um certo estranhamento. E foi mesmo? Foi. Talvez a certeza da partida seja a mais dolorida. Foi e um dia iremos. Mas por hora foi e ficamos. E ficar é descobrir que o assoalho range, reclama e tem tábuas soltas. Já dizia Guimarães Rosa, viver é um descuido prosseguido.
Depois passa. Tudo passa para um depois. E o momento seguinte não registra o de antes. E a vida segue. A gente se levanta, arruma a roupa, recoloca a tábua solta no lugar e volta a sorrir. De quando em quando toda criatura precisa de reticências. Parar de tudo um pouco é poupar-se. Pescar de volta a coisa boa de quem se foi. Lembrar é ficar perto outra vez. É dizer do amor que agora não tem mais destino e que em suspenso, vira dor. E um dia, depois de muitos dias, haverá de ser só saudade. E a tábua solta, um resvalo para voltar a si.