Uma criança atravessa o pátio. Me dobro sobre os joelhos e espero pelo seu abraço. O verão, envelhecido, se despede. As crianças brincam. Rolam pela grama. Inventam pântanos a partir de uma poça de água. Há sempre um quê de recomeço em cada infância. Uma nova chance. E uma mistura de ingenuidade e tempo dividem espaço na trilha do indeterminado. É fato que um dia isso acaba. Seja diante da imagem refletida no espelho ou nas manchas da idade sobre o dorso das mãos. Fomos infância por uma época. Uma espécie de acontecimento intransitivo. Se vivemos em uma família que soube respeitar nosso desenvolvimento e nos acolheu com amparo e ternura, haveremos de ter chegado até aqui de um certo modo, saudáveis. Haveremos de nos lembrar das cantigas de roda, da brincadeira de passa anel, de adivinhação, e esconde-esconde. A criança em nós é invocada a voltar no tempo, em direção ao futuro em que nos encontramos. E quando ela chega, nos assustamos.
Às vezes passamos anos deitados num divã (re)contando a vida, escrutinando as memórias e de repente, rompe a linha do tempo. Um rasgo se abre no tecido existencial. Uma perda, uma despedida, uma morte, uma partida. Um fim de amor ou de trabalho. A constatação da velhice. O pavor diante de uma doença. E uma criança chora em nós. Chora o medo do desamparo diante da imensidão da natureza. Somos sempre pequenos, mas nesses momentos, nos damos conta ainda mais do nosso tamanho. Fantasiamos, assustados, a necessidade de alguém que nos embale, nos seque as lágrimas, faça um carinho nos cabelos e nos acolha. Fantasiamos porque talvez nunca tenha existido alguém que de fato tenha feito isso por nós. Constatar no adulto a solidão da criança é um dos momentos mais abissais do ser humano.
E mesmo assim há sempre uma criança que nos olha e sorri. Um desafio a nos convencer de que é sempre possível o recomeço. A infância nos conta uma história de alegrias e medos, ternura e destruição. E assim crescemos entre a anarquia e o receio. Entre a lei e a transgressão. Se crescemos numa família que soube tolerar nossas explosões de ânimo e hormônios e nos reservou espaço para apenas ser, haveremos de nos ter tornado mais tolerantes e amáveis. Com traumas, é certo, porque viver é ser traumatizado o tempo todo, mas possíveis de sermos curados.
Observo a criança em suas botas com glitter a pisar na poça d’água e penso nas que tiveram a infância roubada. Nas infâncias invadidas por adultos abusadores. A violência sexual infantil é velada, obscura e travestida de medo e vergonha. Demora anos para a criança se dar conta de que está sendo vítima de um crime. Uma em cada três crianças no Brasil é abusada sexualmente até os 18 anos. Em 37% dos casos o criminoso é da família e em 81% das situações, são homens, destes 34% são padrastos e 22% são pais. Não há infância, imaginação, ingenuidade que sobreviva a esse real. Nem sociedade isenta de culpa.