Svetlana pesa um quilo e pouco. Pelos dentes é possível que tenha cerca de sete anos. É cega de um olho e do outro enxerga apenas vultos. Não tem movimento nas patas traseiras, não se sabe se perdeu por conta de um atropelamento ou por maus tratos. Está com uma anemia profunda e com um quadro de desidratação agudo. Quando você toca nela sente todos os ossos da coluna, da cabeça e do rabo. É puro pele e osso. Minada de pulgas, vermes e escoriações, incrivelmente ainda ronrona. Svetlana, nome que demos a essa gatinha sobrevivente de uma hipocrisia humana, foi encontrada ontem. Estava entre os muitos carros e vinhos caros sendo degustados neste veranico de julho no Caminhos de Pedra, em Bento Gonçalves. Sim, depois de um ano e meio em casa e sem sair, decidimos dar uma volta em pleno domingo, com máscara e álcool gel, claro. O lugar é lindo demais. A paisagem é típica da nossa região. As casas, os restaurantes, bistrôs e artesanato local, as flores, a comunidade em si, tudo muito limpo, organizado e encantador. É impressionante como Bento Gonçalves, em questões de cultura e turismo, é anos-luz à frente de Caxias. Porém, lá como aqui, para além das autoridades locais burocratizarem demais o processo no atendimento aos animais de rua, o ser humano, com sua onipotência, falta de empatia e arrogância, pouco colabora por uma melhor qualidade de vida para esses serzinhos. Claro que isso se refere às pessoas em geral, pois sei do trabalho incansável de inúmeras ongs e veterinários que se desdobram em muitos para ajudar e proteger.
Peter Singer, filósofo australiano que defende a expansão do princípio da igualdade com relação à dor e ao sofrimento dos animais para atender aos interesses e preferências dos humanos, nos fala do quanto somos extravagantes em nossas atitudes. Estamos tão submersos nas nossas realidades, preocupados com nossos afazeres ou prazeres que não conseguimos nos dar conta de que existem outras muitas realidades paralelas a nossa, sejam elas sobre outras pessoas e modo de vida, sejam elas com relação aos animais e seus sofrimentos. Eu sei que não é uma tarefa fácil falar sobre ética, tomada de consciência e mudança de hábitos, mas é fundamental repensarmos nosso comportamento, afinal, o planeta parece estar tentando nos cuspir para fora dele e não estamos fazendo nada para nos melhorar.
Svetlana segue internada e não sabemos qual será seu destino. O pouco que temos certeza é de que ela agora está tendo um cuidado e atendimento dignos, longe dos risos vazios, das carteiras cheias e das fotos de instagram fakes. Ter um discurso bonito sobre o cuidado com o outro, seja um outro ser humano ou animal, sem uma ação real, concreta e para além do próprio umbigo, é falso. Ninguém é uma pessoa melhor porque quer ser melhor. Desejo sem ação é fantasia. E se você teve fôlego para chegar até aqui e também sente uma mistura de raiva com a náusea do Sartre quando se depara com situações de descaso, seja com relação a um animal, meio ambiente ou outro ser humano, bem-vindo, está na hora, como dizia Freud, de assumirmos nossa responsabilidade pessoal sobre o caos em que vivemos.