Ser artista é praticar um ato de fé. É olhar para o mundo e perceber o sensível, o invisível, o intolerável. É permitir-se sentir o desequilíbrio do processo. É mais que ter coragem de olhar a tela ou papel em branco. É imaginar-se não sendo. Ao avesso. Gosto muito de uma frase de William Blake que diz assim, “eu mesmo não faço nada. O Espírito Santo realiza tudo através de mim”, por que brinca (talvez ironiza) com a ideia do processo criativo. Não é uma questão de semântica, é uma questão de experimentação.
Amanhã iniciamos mais uma turma de escrita criativa. Dias atrás, assistindo a uma série da HBO com a Kate Winslet, ela debochava, no bom sentido, questionando sobre o fato de realmente existir alguém que trabalhe com isso. Ri junto. Também nunca pensei que iria trabalhar desta forma. Eis-me aqui, enaltecendo a importância de se ter sempre um caderno e uma caneta juntos. Mas a escrita não nasce apenas do desejo de escrever. Carece de repertório. É preciso ler muito, assistir filmes, visitar exposições, observar o contorno do mundo e permitir-se atirar-se no vazio de vez em quando. É preciso sentir o tédio, detectar a ansiedade, as cobranças, identificar o medo e compreender as próprias resistências dentro da jornada de escrita.
Guimarães Rosa disse que a “vau do mundo é a coragem”. É preciso ter uma reserva extra de coragem para se permitir escrever. É preciso que visitemos os nossos lugares internos que nos assustam. O maior desafio não é aprender a evitar o medo ou a incerteza, mas aprendermos a nos relacionar com esse desconforto que nos habita. Quase como na psicanálise, não importa o fato em si, mas sim o que você faz com ele. Escrever é um processo que nunca se encerra. Quanto mais nos exercitamos, mais vamos encontrando nosso estilo, mas é preciso que não nos achemos importantes demais. Ao contrário, é preciso que não nos levemos tão à sério. Ou seja, em outras palavras, é preciso aceitar e relaxar no não saber.
Uma das coisas que costumo trabalhar nestas oficinas é que não existe cura para os fatos da vida. O que existe são modos de narrar. Na maioria das vezes as palavras custam a nascer em nós, então é preciso sentir essa situação claustrofóbica de ter de fazer um exercício de escrita em um determinado tempo. É preciso sentir-se sem saber o que fazer quando todos estão escrevendo menos você. Sinta esse mal-estar percorrer o corpo, as mãos, a mente, o peito. Essa sensação é o início do anseio por uma alternativa.
Foi pensando assim que juntei escrita e psicanálise. Afinal, quem somos nós nisso tudo e sem isso tudo? E tudo começa com um sim, já dizia Clarice Lispector. E então vamos nos acostumando ao absurdo do processo criativo. Ao caos primordial. E aos poucos vamos escrevendo o que verte de nós, sobre nosso desaguar, elaborando e reelaborando nossas memórias, observações e fantasias. Toda escrita é feita de carne, ossos, sangue, suor, lágrimas e muita merda. É preciso também não ter pudor. Por isso, ser artista é praticar um ato de fé.