Hoje acordei com aquela marchinha de samba que notabilizou Carmem Miranda em 1930, Pra você gostar de mim. O início da música logo deflagra a dor, taí, eu fiz tudo pra você gostar de mim, oh, meu bem, não faz assim comigo não, você tem, você tem que me dar seu coração. Esses versos me fazem lembrar de Roland Barthes quando afirmava, e aqui cito de cabeça, que a identidade fatal do apaixonado nada mais é do que: eu sou aquele que espera. Aceitar-se apaixonado é confessar antes de tudo e sem saber que está disposto ao sofrimento. Durante muito tempo a ideia de sofrer veio atrelada a palavra paixão, a sensação de se estar mergulhado neste estado que embaralha a vontade, embaça a consciência e nos amarra a um ser do qual temos a certeza de que jamais poderemos viver sem. Causa ou consequência, o que determina a paixão é o estado de sofrência. Num primeiro momento, corporal, depois da alma. Etimologicamente, paixão é sofrimento e seus efeitos são notórios e vão do patético ao trágico. Podemos passar ainda pela fixação toxicômana, o fetichismo compulsivo e o pensamento obsessivo. Os traços da paixão são bem visíveis e ninguém se engana quando os sente ou pressente.
Há alguns anos li Vinte e quatro horas na vida de uma mulher, de Stefan Zweig, e ali o autor evoca o aprisionamento amoroso de uma mulher por um homem cativo da paixão pelo jogo. Num determinado momento a protagonista diz: o que me surpreendeu inicialmente de modo tão terrível foi sua febre, sua expressão loucamente apaixonada, este modo convulsivo de se entenderem e de lutarem entre si. Cito Zweig porque foi com ele que aprendi sobre o quanto desconhecemos as causas íntimas do drama no qual mergulhamos ao nos apaixonarmos. O sujeito apaixonado comporta-se como se estivesse despossuído de si mesmo, com dificuldade de lidar com os próprios pensamentos e atos.
Quem nunca ouviu a expressão “você é tudo para mim”? Nesta retórica amorosa o apaixonado recebe a mensagem de forma invertida. É também a mensagem do pequeno sujeito dirigida ao grande Outro de “quero ser tudo para você”. Mas aos poucos vamos descobrindo que jamais poderemos realizar essa louca aspiração e então ficamos inconsoláveis. Paradoxalmente o problema colocado pela paixão afeta menos o apaixonado do que as pessoas a sua volta. Quando testemunhamos um apaixonamento somos atingidos pela extravagancia daquele(s) que parece escapar da lógica comum.
Escrevo e enquanto lembro da marchinha de Carmem Miranda penso que somos tão despreparados para os sentimentos. Não entendemos a paixão, misturamos os afetos, confundimos nossas dores e dramas com o outro que se apresenta disposto a nos amar, pouco entendemos de amor e estamos sempre nos atirando neste mar. Penso também que não seria diferente se soubéssemos de algo a mais. Talvez não seja uma questão de saber, mas de sentir. Não é possível falar de paixão sem pensar no desdobramentos reais como as vivências de abandono, separação, alienação, desamparo, solidão, dominação. Mesmo assim, nos apaixonamos. Encerro citando Winnicott, que tanto gosto, “aquilo que tenho de mais real, é o que não tenho”.