No meio do caminho tinha uma pedra e ela era lisa como um seixo. Dava para ver onde a água havia escrito seu tempo. Recolhi a pedra do chão, seu destino certeiro, e a pus perto das lavandas. Raios de sol a banharam durante o dia. Jurei que podiam atravessá-la. Uma pedra atravessada pelo sol. De certo que se chegasse bem perto veria ali uma colônia de insetos invisíveis.
No meio do caminho tinha uma pedra e ela era porosa, de certa forma. Se chovesse ficaria encharcada. O vento a enchia de pólen e poeira. Era casa do orvalho e quando havia neblina, as nuvens trafegavam por ela sem pressa. Os passarinhos procuravam alimento perto dela e ela nunca se mexia para dar licença. Às vezes colocava a pedra junto ao ouvido. Haveria algum som de algum lugar desconhecido?
Coleciono pedras. Elas estão pelo caminho, nas paredes, nos potes, entre as plantas. Gosto das pedras porque elas estão aqui desde que o mundo é mundo. São eternas. Quando me sinto triste, olho as pedras, seus formatos, cores, textura e densidade. A natureza é tão mais sábia que nós. Sinto uma profunda humildade diante do que é muito maior e mais velho que eu. Nos últimos tempos, em quase todas as sessões de terapia, ouço os pacientes falarem da morte. Estão morrendo as pessoas queridas. Dias atrás, enquanto mexia nas plantas do jardim, ouvi uma notícia que disse que pela primeira vez se registrou mais mortes que nascimentos. Nunca ficamos tão cara a cara com a morte. Nunca falamos tanto sobre a nossa brevidade. Mexer com as pedras é relembrar que nosso tempo aqui é finito.
Não é fácil dizer da morte e nem sobre o morrer. Morte é uma palavra de pedra e pronunciá-la machuca a boca. Quando escuto alguém falar da morte (ou do morrer), lembro de como toco nas pedras que tenho em casa, da necessidade de ter força e ternura para mexer com elas. Lapidar uma pedra leva tempo. Algumas jamais deixarão de ser cascalho. E há espaço para todas. Talvez por isso goste tanto de João Cabral, afinal, é preciso aprender com as pedras, frequentá-las, captar sua voz inenfática, entender sua resistência fria e a poética da sua carnadura concreta. Concordo com o poeta, as pessoas são como pedras que carregam em si sua cartilha muda e quem se atreveria a soletrá-la?
De Drummond e sua pedra no meio do caminho, guardo a travessia da casa de minha avó até a saudade de hoje. Um chão de pedregulhos, impossível de andar de chinelo de dedos. As pedras de lá me ensinaram que há dores que carregaremos para sempre dentro das entranhas de nossa alma. Não há chuva que refresque a saudade da ausência. E não há pedra que não guarde em si, todos os silêncios e segredos do mundo.